Para uma montadora, ser “sustentável” é bem diferente do que você pensa
Empresas do setor sofrem para manter lucros e rentabilidade em meio a pressões de governos por carros que não poluem o meio ambiente
Por Homero Gottardello
O termo “sustentabilidade” se tornou, nos últimos anos, um verdadeiro jargão para muitos setores da indústria, especialmente para o automotivo.
É que os fabricantes automotores figuram entre dois dos três maiores responsáveis pelas emissões de poluentes em nível global, segundo o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) da ONU (Organização das Nações Unidas, através da queima de combustíveis fósseis, dos processos de produção industrial e de gás natural.
Estamos falando de um tema tão importante que a União Europeia (UE) anunciou, em julho, que vai propor o ano de 2035 como data limite para os veículos equipados com motores a combustão interna em países do bloco.
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A presidente da Comissão Europeia (que é o braço executivo da UE), Ursula von der Leyen, confirmou ao jornal alemão Sueddeutsche Zeitung que o objetivo é reduzir as emissões de dióxido de carbono em 55% até 2030.
“Precisamos definir uma data final para que todos os automóveis europeus sejam livres de emissões, caso contrário não atingiremos nossa meta de neutralidade climática até 2050”, disse ela.
No momento, dados revelam o aumento das emissões relacionadas ao transporte rodoviário no continente, mesmo com o crescimento da participação de modelos elétricos e híbridos nas vendas.
Ursula não deixa dúvidas quanto à responsabilidade dada às montadoras: “Como as companhias vão se adaptar às novas regras é problema delas. Afinal, são os próprios fabricantes que sabem como desenvolver novos automóveis e até mesmo novos combustíveis”, acrescentou.
Por seu lado, as gigantes do setor automotivo afirmam que, sem uma rede de recarga pública, não vão aceitar as metas de emissões. O lobby das grandes marcas europeias já vem agindo ferozmente nos bastidores do Parlamento Europeu.
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“Uma data limite para o fim dos motores a combustão põe pressão tanto na indústria quanto nos governos, que terão que criar uma rede para recargas ao longo das rodovias e em distâncias [muito bem] definidas. Esta não é uma ação que se pode exigir das montadoras”, avalia Patrick Hummel, analista do banco de investimentos e serviços financeiro suíço UBS.
A consultoria de gestão AlixPartners calcula que, entre este ano e 2025, o setor automotivo – montadoras e fornecedores – vai investir US$ 330 bilhões (o equivalente a mais de R$ 1,7 trilhão) na eletrificação de seu portfólio, o que representará um aumento de mais de 40% em relação ao aporte inicialmente previsto para o período entre 2020 e 2024.
Como o leitor percebe, pela queda de braço entre a indústria e a EU, não é exatamente a preservação do meio ambiente que está na mira dos fabricantes de veículos automotores, mas a proteção, a continuidade, a subsistência de seu próprio negócio.
O significado de “sustentabilidade” para gigantes como a General Motors e o Grupo Volkswagen, apenas para citar duas companhias, está muito mais ligado às finanças do que ao ar que respiramos. Está muito mais ligado ao aspecto corporativo do que a um real desejo de salvar o meio ambiente.
A indústria automotiva é o motor da economia alemã e suas principais marcas têm um grande poder junto à União Europeia. “Historicamente, muitos sacrifícios foram e ainda são compelidos às pessoas, para proteção deste setor, que é muito influente politicamente. Sem apoios governamentais e respaldos políticos, a indústria caminharia para um futuro de incertezas”, pontua o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Baden-Württemberg, com sede em Stuttgart, Roman Zitzelsberger.
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Ganhos precedem a preservação meio ambiente
A sustentabilidade do negócio precede a proteção do trabalho e do meio ambiente. Não é à toa que os franceses vêm se opondo à meta da União Europeia, de que todos os zero-quilômetro sejam livres de emissões até 2035. O gabinete do presidente da França, Emmanuel Macron, defende que os modelos híbridos tenham uma sobrevida
O principal grupo de lobby no país para este setor, PFA (La Plateforme Automobile), estima que 17,5 bilhões de euros - o equivalente a quase R$ 110 bilhões - terão que ser investidos só no país, até meados desta década, para o desenvolvimento de baterias, estações de recarga, infraestrutura para o uso de hidrogênio e serviços relacionados.
Mas o principal, do ponto de vista humano, ninguém fala: a descontinuação dos motores de combustão interna vai fechar cerca de 100 mil postos de trabalho, só na França, até 2035, além do cerrar as portas de fábricas que, hoje, empregam outros 190 mil trabalhadores.
Para efeito comparativo, todo o setor automotivo brasileiro emprega, atualmente, menos de 100 mil pessoas, queda de 20% em relação a 2013. É o fim do mundo!
A tão alardeada sustentabilidade também não faz parte das razões para a instalação de novas plantas para linhas de montagem, é o que mostra a pesquisa realizada pela CNI (Confederação Nacional da Indústria) e pela Cepal (Comissão Econômica para a América Latina), divulgada em nota técnica do mês passado.
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O primeiro desses motivos é a “proximidade com o mercado consumidor”, seguido pelos “benefícios fiscais” (fatores preponderantes para 57% dos pesquisados) e, depois, pelo “custo da mão-de-obra” (41%). A sustentabilidade sequer aparece entre as razões citadas pelos investidores.
Na verdade, o que a indústria automotiva busca, desesperadamente e em nível global, é a preservação, a manutenção e a proteção de seus ganhos, condição sine qua non para sua própria sobrevivência.
É que, enquanto o segmento de software alcança lucro de quase 28% (nas aplicações para internet) ou 16% (no nicho de entretenimento) nas suas operações, a margem das maiores montadoras do mundo, Toyota e Volkswagen, ficam abaixo de 6%.
A chinesa Great Wall tem ganhos líquidos superiores aos das marcas europeias, de quase 8%. Estes números, revelados pela Jato Dynamics, mostram que há opções de investimento muito mais rentáveis para o grande capital, em cadeias infinitamente mais simples e promissoras.
Ainda de acordo com a consultoria Camino Financial, o setor de serviços fiscais reserva margens de lucro quase quatro vezes maiores do que as apuradas pelos fabricantes de veículos, na casa de 20%.
É por isso que os automóveis, de maneira geral, estão cada vez mais pobres em áreas como acabamento interno (seus custos têm que ser baixados, no limite da precarização) e caros (com margens na casa dos 5%, os investidores estão migrando para outros setores). E adivinhe quem paga esta conta? Você!
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Necessidade de reinvenção
Mas os preços dos modelos zero-quilômetro parecem ter atingido o limite da capacidade de compra dos consumidores, em nível mundial. E, pressionadas de todos os lados (pelas metas de redução de emissões e pela fuga dos investimentos), gigantes como a General Motors buscam reinventar seu negócio a partir da eletrificação.
“Entramos nesse processo, de eletrificação, como uma montadora, mas pretendemos nos tornar fornecedores desse tipo de sistema de propulsão para outros tipos de veículos e, também, outros setores”, conta o diretor-executivo de negócios de bateria e células a hidrogênio da GM, Charlie Freese.
“Os bilhões que a companhia está investindo na eletrificação de seu portfólio vão levá-la muito além e esperamos, por exemplo, retornar nossas parcerias com os setores aéreo e ferroviário, através dos sistemas Ultium e Hydrotec”, acrescenta.
Este parece um caminho bastante plausível, na avaliação do mercado. “Em sua essência, a GM é uma empresa de engenharia”, pondera o estrategista da consultoria de análise financeira MorningStar, David Whiston.
“Certamente, eles sabem dar uma destinação para a tecnologia Hydrotec que não se resuma aos automóveis”, adita. A Wabtec, que fornece sistemas para locomotivas, é uma das interessadas nas baterias Ultium, da GM.
“Nos próximos anos, as montadoras tradicionais podem estender seus negócios para outros setores, como o de serviços públicos”, considera o gerente geral do segmento de energia para indústria da IBM, Mahesh Sudhakaran.
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“Já estamos vendo uma convergência entre os setores de gás e petróleo, automóveis e eletricidade. As gigantes automotivas terão uma boa oportunidade se, realmente, entrarem em novos mercados e adotarem novos modelos de negócio, na medida em que essa sinergia aumentar”.
Uma coisa já se sabe: produzir automóveis ficará ainda mais caro e não há uma solução efetiva para a indústria suportar o aumento nos custos, ao mesmo tempo em que tem que alcançar um crescimento sustentável para suas vendas – esta, sim, a “sustentabilidade” que a convém.
Afinal, todos sabem que, na economia de mercado, estagnação é sinônimo de prejuízo e o capitalismo exige a expansão do negócio como condição inexorável para sua própria manutenção.
“Os elétricos trarão grandes mudanças na maneira como as montadoras projetam veículos e o desafio será melhorar a eficiência de custos”, explica o diretor de marketing da subsidiária norte-americana da ArcelorMittal, Shalaj Gupta, que chama atenção para os padrões de segurança e a metas de gastos.
“Só com esforços de co-engenharia será possível colocar novos produtos nas ruas e estradas”, frisou o executivo. A própria ArcelorMittal apresentou, recentemente, uma nova liga de aço (Fortiform 980) que, além de ser 20% mais leve comparada às ligas DP800 e DP600, permite o estampo em formas complexas sem perda de resistência e em quantidades menores.
O uso de plástico reforçado com fibra de carbono (CFRP) até mesmo na estrutura, como é o caso do novo BMW Série 7, além de aços de alta e altíssima resistências (AHSS e UHSS), são uma solução “sustentável” na medida em que, sendo também mais leves, podem ser aplicados em pontos específicos do chassi, aumentando a resistência do conjunto a até 980 MPa.
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“São aços mais caros que o convencional, mas você economiza usando menos material. E o implemento desse tipo de aço é, de longe, a maneira mais eficiente de reduzir o peso de um veículo – o que reduz o consumo, aumentando a sua eficiência energética”, exemplifica o diretor de marketing para o setor automotivo europeu da ArcelorMittal, Philippe Aubron.
“Trata-se de um descomplicador industrial, já que as montadoras têm máquinas de estampo e solda que seguem sendo usadas na linha de produção, sem necessidade de novos investimentos nas linhas”, segue.
Aqui também fica evidente que as exigências governamentais para proteção do meio ambiente não são, exatamente, uma preocupação do setor, mas um limitador que impõe marcos para o desenvolvimento de produtos – não fossem esses marcos, provavelmente estaríamos rodando em carros com carburadores até hoje.
Os limites de emissões são, então, buscados da forma mais econômica para a indústria, que precisa de “sustentabilidade” para o seu negócio, não para o meio ambiente.
Em outras palavras: para além de apertar o cinto do consumidor, que já não consegue suportar o encarecimento dos automóveis e, em última instância, bancar os gastos bilionários para a transição do motor a combustão para os propulsores elétricos, as montadoras terão que aproveitar a expertise que estão ganhando, no campo da eletrificação, para ir além das vendas de carros.
Porque o consumidor, cada vez mais empobrecido, e o trabalho, cada vez mais precarizado, já não dão conta de manter a roda criada por Henry Ford girando…
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