Como a Segunda Guerra Mundial fez carros rodarem com lenha no Brasil
Adoção de gasogênio foi medida emergencial pela escassez de derivados do petróleo
Atualmente, com a chegada dos carros elétricos e híbridos, o mundo dos carros vive uma revolução. Demoraram para chegar ao Brasil, é verdade. Talvez quinze anos se compararmos com os países desenvolvidos.
Acompanhando essa transformação vem a velha discussão das vantagens e desvantagens, onde um lado encara as novas tecnologias como salvação, e o outro as enxerga como a perdição da humanidade.
Sem mergulhar na análise dos pontos positivos e negativos da eletrificação da frota, podemos comparar a estranheza e a empolgação causadas pelo avanço com alguns outros momentos automotivos.
Flex e GNV
Se você já tem alguns anos de habilitação, talvez se lembre dos inícios dos anos 2000, quando os carros bicombustíveis viraram realidade. Não foi uma mudança forte como a eletrificação, mas houve discussões sobre a durabilidade dos motores, o impacto no setor de serviços etc.
Alguns anos antes, houve o início do emprego do gás natural veicular, GNV, na frota brasileira. Novamente discussões sobre a segurança, oferta de gás, rede de abastecimento, e governos de alguns estados oferecendo generosas reduções na alíquota do IPVA para motoristas que optarem pela instalação do kit.
Mas antes da eletrificação, do GNV e do PróÁlcool o Brasil passou por uma esquecida mudança no combustível de boa parte da frota. E essa mudança, que hoje é desconhecida da multidão, teve sua cota de drama.
Lenha: solução em tempos de guerra
Durante a Segunda Guerra Mundial houve uma escassez global de diversos materiais e combustíveis. Com isso, tecnologias mais antigas e de menor custo foram adaptadas e desenvolvidas para que as atividades essenciais continuassem.
Foi nesse cenário que o gasogênio surgiu. Gasogênio é o nome dado ao equipamento utilizado para transformar materiais sólidos ou líquidos em uma mistura de gases, chamada de gás de síntese.
Esse gás, obtido pelos processos de queima incompleta e craqueamento, normalmente contém monóxido de carbono, dióxido de carbono, nitrogênio, hidrogênio, metano, entre outros, e pode ser utilizado como combustível para iluminação pública, aquecimento, termelétricas ou motores com ciclo otto.
Então, com o petróleo escasso e a rede de refino e distribuição paralisada, o gasogênio se popularizou como item obrigatório nos carros, caminhões e ônibus durante a Segunda Guerra. Os combustíveis mais comuns eram carvão vegetal e mineral, que alimentavam a complexa engenhoca.
O sistema básico era composto por: gerador de gás (Gaserzeuger), resfriador de gás (Gaskühler), desumidificador (decantador - Absitzbehälter), filtro de pós limpeza (Nachreiniger) e ventilador (Anfachgebläse).
Nos veículos que saíram com o sistema de fábrica eram feitas pequenas mudanças no design, e os componentes ocupavam parte dos compartimentos de bagagem. Já nos veículos onde o sistema era adaptado, grandes tanques e trocadores de calor eram instalados na parte traseira dos carros, sobre o para-choque.
Solução nada prática
Mas não se engane: não bastava colocar carvão no tanque, dar a partida e seguir viagem. Havia procedimento para ligar e desligar o sistema, coisa digna de máquinas industriais ou aviação.
Como o gás era aspirado pelo motor e o sistema devia ser iniciado com o motor desligado, o ventilador era necessário para simular essa aspiração. Então era necessário ligá-lo antes de posicionar uma bucha em chamas na entrada do queimador, algo similar com o que era feito até pouco tempo nos fogões domésticos ou boilers a gás. A sucção causada pelo ventilador carrega a chama para dentro do gerador, acendendo o sistema.
Então, em até quinze minutos, o gás que sai do ventilador pode ser inflamado. Nesse momento você tinha que despertar o Walter White em você, acender o gás e analisar a cor da chama. Isso mesmo! Se ela ficasse calma, uniforme e num tom azul-avermelhado, você estava pronto para partir! Bastava desligar o ventilador e fechar a válvula que direcionava o ar a ele, e correr para dar partida no motor.
Mas cuidado! Pode acontecer da brusca abertura da borboleta causar uma quebra no fluxo de gás. Se isso acontecer você precisa ventilar o sistema e começar o processo todo novamente. Caso o procedimento dê certo, é só dirigir! Lembrando sempre de ajustar a riqueza da mistura e o ponto sempre que necessário...
Desligar o sistema também era complexo, uma vez que o calor residual pode continuar gerando gás. Este precisa ser lavado ou queimado. Falando no gás, vale lembrar que alguns dos gases que compõem o gás de síntese são bem nocivos aos seres humanos, como o monóxido de carbono.
Manutenção todo dia
Além de ter a operação complexa, o sistema também requeria uma manutenção diária, que incluía limpeza de cinzas nos filtros e no bocal do queimador, além de testes para verificar a estanqueidade do sistema, para evitar vazamentos de gás ou entradas de ar.
O gasogênio instalado em veículos não foi um avanço tecnológico, como os outros exemplos citados no início do texto. Pelo contrário: pode ser encarado como um retrocesso temporário adaptado para manter a frota circulando num momento de escassez. O racionamento de petróleo e derivados causado pela Segunda Guerra fez o gasogênio ganhar força, inclusive sendo regulamentado pelos governos.
Getúlio Vargas criou a Comissão Nacional do Gasogênio, CNG, e emitiu decretos regulamentando a fabricação e comercialização do sistema para instalação em veículos particulares, comerciais, agrícolas... O gasogênio ganhou até propaganda do governo, com o curta-metragem “Nosso amigo, o gasogênio”.
O sistema chegou às pistas, sendo usado em competições nacionais no período da guerra. Chico Landi venceu três campeonatos com seu Buick adaptado com o gasogênio e usando carvão de nó de pinho. Provavelmente, era como o pessoal que enche o tanque com gasolina premium para rodar no track day.
Com o fim da guerra e a retomada das rotas comerciais, o gasogênio caiu em esquecimento. O tamanho, custo e eficiência do sistema eram impeditivos para seu uso. Estima-se a perda de potência em 35%, usando madeira ou carvão de boa qualidade.
Há relatos de pessoas carregando machados e outras ferramentas para, em caso de “pane seca”, conseguir madeira onde fosse possível. Durante a crise do petróleo, na década de 1970, o gasogênio foi ventilado na mídia, com o perdão do trocadilho.
A Quatro Rodas chegou a testar uma C10 com uma versão mais moderna da adaptação. Ainda hoje existem alguns poucos carros rodando com o sistema em pleno funcionamento. Vale pela história e pela nostalgia, mas eu não quero ter que acender uma bucha e analisar o Pantone da chama antes de sair de casa pela manhã...
É, meus amigos, não reclame das novas tecnologias! Seus avós tiveram que se contentar com algo bem pior, sem ter escolha.
Este texto contém análises e opiniões pessoais do colunista e não reflete, necessariamente, a opinião da Mobiauto.
Antonio Frauches, engenheiro mecânico e entusiasta do mundo automotivo.
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