Como a Stellantis tentará mover carros elétricos com a energia do centro da Terra
Stellantis anuncia investimento de meio bilhão de reais em projeto de energia geotérmica que, em 2030, pode reduzir déficit global de lítio em 40%
A virada da eletromobilidade não se limita à renovação da frota circulante e, para além da substituição de veículos equipados com motores a combustão por outros elétricos, exige um grande esforço para o desenvolvimento de novas matrizes energéticas.
A energia geotérmica, por exemplo, permite a utilização do calor do interior da Terra para se obter eletricidade, água quente e calefação, oferecendo uma alternativa aos combustíveis fósseis e sua aplicação permitirá à Stellantis, controladora da Fiat, Jeep, Peugeot, Citroën e RAM, além de 11 outras marcas, atingir a meta de carbono zero líquido, em 2038.
Trata-se do equilíbrio entre a quantidade de emissões que provocam o efeito estufa e a parcela removida da atmosfera, uma meta tecnicamente viável de acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), mas que não se alcança facilmente.
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O grupo anunciou, nesta semana, o investimento de US$ 100 milhões (o equivalente a R$ 499 milhões) no projeto geotérmico “Hell’s Kitchen”, lançado na Califórnia, para criar um novo modelo de produção que promete EVs ainda mais ecológicos.
Como o leitor mais astuto pode imaginar, aquilo que sugere uma responsabilidade ambiental digna de nota visa, na verdade, o enquadramento de seus veículos elétricos ao novo pacote de incentivos do governo norte-americano, que traz requisitos mais rigorosos para uso de minerais críticos e componentes de pacotes de baterias, abolindo o antigo crédito fiscal de US$ 7.500 (o equivalente a R$ 37.400) extensivo a todos os EVs.
“Nossa iniciativa de descarbonização, líder do setor, inclui produção com baixas emissões e processos de fabricação cada vez mais sustentáveis”, afirma o presidente-executivo (CEO) do grupo franco-ítalo-americano, Carlos Tavares.
“Nosso plano estratégico prevê a eletrificação de todas as gamas ofertadas na Europa, já em 2030, e que os modelos elétricos correspondam por 50% de nossas vendas, nos Estados Unidos”, detalha Tavares.
Na prática, isso significa que a Stellantis vai eletrificar rapidamente, senão todos, a maioria dos modelos da Chrysler, Dodge, Alfa Romeo e Maserati, além da Jeep e da RAM, vendidos no mercado norte-americano. Mas, como já foi dito, a simples eletrificação dos portfólios destas marcas não será suficiente para cumprir novos marcos regulatórios, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa.
E apesar de, no Brasil, haver uma grande resistência ao entendimento de que são leis, e não a mera vontade dos consumidores, que determinam se um automóvel é equipado obrigatoriamente com setas, injeção eletrônica, catalisador, airbags ou freios ABS, são os limites de emissões que imporão, decretarão, determinarão a virada da eletromobilidade. Por óbvio, estes limites não se resumem aos veículos, à frota, mas a toda atividade industrial do setor automotivo.
Neste sentido, o fornecimento do monoidrato de hidróxido de lítio a seis fábricas de baterias da Stellantis, na América do Norte e Europa, começa em 2027. “Vamos gerar US$ 2 bilhões – o equivalente a R$ 9,9 bilhões – em receita, globalmente, só com os negócios de economia circular. E, isso, já em 2030”, detalha a gerente de sustentabilidade da companhia, Alison Jones.
Como se pode ver, custará caro à companhia tornar seus EVs elegíveis para os incentivos fiscais nos Estados Unidos, mas há uma boa expectativa de retorno e a tarefa será dividida com os fornecedores.
“Temos uma abordagem proativa e, nos próximos seis anos, vamos estender o uso de materiais verdes em nossos veículos, que hoje é da ordem de 15%, para 40%. Nossos fornecedores – são 11 empresas de 18 cidades diferentes, só nos EUA – terão, sim, que se preparar e assumir novas responsabilidades”.
Onze novas minas
O projeto californiano “Hell's Kitchen” é sediado no poluidíssimo Salton Sea, o Mar de Salton, que fica na Falha de San Andreas. Lá, a Controlled Thermal Resources Holdings promove, hoje, o maior esforço geotérmico de abastecimento de lítio de todo o mundo, onde espera produzir até 300 mil toneladas métricas do carbonato de lítio equivalente, anualmente.
“Os produtores estão cada vez mais preocupados com atrasos nas licenças ambientais de minas e com a inflação nos preços do metal, que podem prejudicar o fornecimento e atrasar os cronogramas de eletrificação das montadoras”, pontua Stu Crow, presidente da Lake Resources, companhia estatal australiana que opera com extração direta no Triângulo do Lítio, área de salinas na interseção de Argentina, Chile e Bolívia que concentra 60% dos recursos globais deste metal.
Estamos falando de um insumo que, até bem pouco tempo, era usado principalmente em cerâmica e produtos farmacêuticos, mas que, agora, é um dos itens mais procurados do mundo, devido à virada da eletromobilidade”, acrescenta Crow.
O que está em jogo é o ritmo com que os EVs substituirão os modelos com motores de combustão interna, o que é fundamental na transição para a energia verde. Estima-se que, em 2030, a demanda global de lítio supere a oferta em 500 mil toneladas métricas e, desta forma, o projeto “patrocinado” pela Stellantis reduziria este déficit em 40%.
“A ‘Hell's Kitchen’ recuperará lítio de salmouras geotérmicas usando energia renovável e vapor, para produzir insumo verdadeiramente verdes”, destaca o CEO do grupo, Carlos Tavares.
“Essa tecnologia elimina a necessidade de tanques de salmoura para evaporação, como ocorre na América do Sul, de minas a céu aberto e do emprego de combustíveis fósseis no processamento do metal”, complementa.
Hoje, existem 45 minas de lítio espalhadas pelo mundo. Outras 11 estarão em operação, até a virada do ano, e mais sete iniciarão suas operações minerárias, em 2024. “O que poucos se dão conta é que há uma enorme diferença entre o metal extraído do solo e o que é usado pelos EVs e, hoje, não há instalações suficientes para processar o insumo usado nas baterias veiculares. Na prática, isso significa que as montadoras serão obrigadas a aceitar lítio de menor qualidade que, por sua vez, implicam na diminuição do alcance de um veículo elétrico”, pondera a diretora de estratégia (CSO) da Livent, fornecedora da Tesla Motors, Sarah Maryssael. “Estamos diante de um grande desafio”.
De volta à Stellantis, está claro que o investimento do grupo em energia geotérmica é uma aposta em redução de custos, a longo prazo, e competitividade, já que a curto e médio prazos seus EVs serão beneficiados com créditos fiscais.
Apesar de não fazer parte do dicionário dos apaixonados por automóveis, a energia geotérmica é a quarta fonte renovável mais importante, atrás apenas das energias solar, eólica e hidrelétrica.
Em termos de geração, há um potencial para aumento dos menos de 20 bilhões de kWh atuais para quase 50 bilhões de kWh, em 2050, o que faz desta matriz um componente essencial para um futuro verde.
Sublinhando que os recursos geotérmicos podem ser
usados para gerar eletricidade em qualquer tipo de sistema, desde longas redes
de transmissão continentais até o uso local em cidades remotas ou estruturas
autônomas.