Há 50 anos, Brasil tinha microcarro elétrico popular de R$ 20.000

Hoje atrasado, país já esteve na vanguarda da eletromobilidade com o Gurgel Itaipu, sonho que ficou pela estrada do desinteresse

JC
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01.09.2021 às 19:56 • Atualizado em 29.05.2024
Hoje atrasado, país já esteve na vanguarda da eletromobilidade com o Gurgel Itaipu, sonho que ficou pela estrada do desinteresse

Por Homero Gottardello

O Brasil está ficando de fora da revolução da eletromobilidade, que se opera a pleno vapor na Europa, Estados Unidos e em grande parte da Ásia. Pelo menos é isso que aponta o mais recente estudo feito pela Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores), em parceria com o Boston Consulting Group (BCG). 

De acordo com o ensaio, só em 2035, portanto daqui a 14 anos, a participação dos modelos elétricos nas vendas nacionais superarão o modesto percentual de 30%.

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“O Brasil poderia ser um dos protagonistas globais em carros elétricos, mas estamos na contramão. Existe uma diferença muito grande entre o planejamento brasileiro e do mundo”, alertou o presidente da ABVE (Associação Brasileira do Veículo Elétrico), Adalberto Maluf, em entrevista à revista “Exame”. 

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Maluf chama atenção para um dado ainda mais preocupante: que só 10% da frota nacional será composta por veículos elétricos em 2050 – a estimativa é da EPE (Empresa de Pesquisa Energética), vinculada ao Ministério de Minas e Energia.

Certo é que, até lá, seguiremos como mercado de “desova” para motores a combustão interna que, apesar de encantarem os tupiniquins com potência e eficiência inéditas por aqui, já foram condenados à obsolescência nos países desenvolvidos, onde não têm futuro nem como peça de museu. 

“Estamos preocupados, porque a Ford saiu – fechou suas fábricas, no país – por falta de visão do futuro. Se nada for feito, não haverá [mais] indústria automotiva [nacional]”, adverte Maluf. 

O mais incrível da situação em que nos encontramos é que o Brasil perde o bonde da História justamente quando poderia estar dando as cartas no processo de eletrificação do segmento automotor.

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O sonho da Gurgel

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É que, há exatos 45 anos, a Gurgel – uma das poucas montadoras 100% nacionais, que produziu mais de 30 mil veículos em 27 anos de existência, até setembro de 1996 – poderia ter se tornado uma pioneira na eletromobilidade, garantindo, no mínimo, a emancipação que nossa indústria jamais teve. 

“Eu me formava na Escola Politécnica de São Paulo, em 1949, e o professor tinha pedido para fazermos o projeto de um guindaste de coluna. Então, para surpreendê-lo, eu projetei um automóvel pequeno, com motor de dois cilindros”, contou o engenheiro João Augusto Conrado do Amaral Gurgel ao programa televisivo “Globo Ciência”, em 1988, seis anos antes do encerramento da fábrica e 21 anos antes de sua morte. 

Não se sabe, ao certo, qual era o veículo em questão, mas o mesmo engenheiro, já como presidente da montadora que lhe tomava o sobrenome, apresentou, em 1974, o protótipo de um dos primeiros microcarros de produção totalmente movidos a eletricidade, o Itaipu. 

O modelo, de 2,65 metros de comprimento, era 4,5 cm menor que o Smart ForTwo atual e seu preço sugerido para o lançamento comercial, em dezembro de 1975, era de inacreditáveis US$ 2.490 ou menos de Cr$ 23.000 – 23 mil cruzeiros da época. O valor, convertido para a moeda atual, seguindo o índice de correção IPC-SP (Fipe), daria aproximadamente R$ 20.000 hoje.

“O Itaipu tinha um desenho curioso e, visto de lado, era um trapézio sobre rodas. Tratava-se de um minicarro de uso exclusivamente urbano para duas pessoas, fácil de dirigir e manobrar, que usava baterias recarregáveis em qualquer tomada de eletricidade, como um eletrodoméstico”, conta o jornalista Lélis Caldeira, em seu livro “Gurgel – Um Brasileiro de Fibra”.

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PIX de menos de R$ 20.000

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O pequenino Itaipu tinha autonomia de cerca de 60 quilômetros, mas não passava da velocidade máxima de 50 km/h. Já a recarga das dez baterias de ácido de chumbo, que geravam 4,5 cv de potência, levava cerca de dez horas, na tomada de casa. 

Não são números tão empolgantes como os atuais, mas as baterias de íon de lítio não existiam e pode parecer exagero, mas, com o Itaipu, seria o equivalente a você entrar em uma concessionária, amanhã, fazer um PIX de menos de R$ 20.000 para sair de lá a bordo de um elétrico, ficando assim independente da bomba de combustível. Tal cenário fica ainda mais sedutor em tempos de combustível tão caro.

Agora, a razão para enfrentarmos uma realidade bem diferente da imaginada por Gurgel é nossa dependência das marcas estrangeiras ou, apenas e tão somente, nosso desinteresse expresso nas palavras de seu próprio professor, naquele longínquo 1949: “Carro não se fabrica; compra-se. É coisa para multinacionais, não para brasileiros”.

Este pensamento retrógrado se perpetua até os dias de hoje, em uma espécie de negação de nossas próprias possibilidades. 

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“No Mercosul, há a maior reserva de lítio do mundo – o chamado “Triângulo do Lítio” é formado pelos Salares de Copiasa e Uyuni, na Bolívia, de Atacama, no Chile, e Hombre Muerto, na Argentina – e, no Brasil, temos minérios raros para a construção de baterias e componentes eletrônicos”, destaca o presidente da ABVE. 

O pior desta história é que as mesmas bases lançadas durante o governo de Juscelino Kubitischek (de 1956 a 61), que atraiu as gigantes do setor automotivo para o país, continuam valendo quase sete décadas depois.

O governo oferece todas as vantagens financeiras e tributárias imagináveis, possibilitando, inclusive, a importação de ferramental usado com taxas cambiais especiais para montagem de veículos ultrapassados, em descompasso com os ofertados pelas mesmíssimas marcas em seus mercados de origem. 

“Quando o Brasil tentar se inserir [na indústria global dos veículos elétricos], já será carta fora do baralho”, prevê Maluf. E não há nenhum tipo de futurismo nesta previsão – pelo contrário. Em 1988, João Augusto Gurgel já achava que havia passado da hora de o Brasil ter sua própria indústria: 

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“As multinacionais formaram muitos técnicos e, hoje, temos engenheiros, fornecedores e tecnologia para desenvolvimento e produção de um carro 100% nacional”, disse ele à reportagem do “Globo Ciência”, lembrando que a Honda começara sua história na década de 60 em um Japão que ainda tentava se reerguer do colapso da Segunda Guerra Mundial, fabricando um modelo econômico com motor de dois cilindros.

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Só para se ter uma ideia do vanguardismo da Gurgel, a montadora brasileira chegou a levar toda sua linha de produtos, composta de dez veículos diferentes (mais do que a Fiat tem em seu portfólio hoje), para a edição de 1979 do prestigiadíssimo Salão do Automóvel de Genebra (Suíça). 

O Brasil estava encabeçando a eletromobilidade, na época, mas a criatividade e o empreendedorismo nacional foram desprezados, mais ou menos como ocorre hoje: “Precisamos aprovar uma política industrial para o setor automotivo, porque o Rota 2030 foi desidratado e não tem incentivos para a indústria da transformação”, enfatiza Maluf. 

“Estamos com mais de dez anos de atraso no padrão que seguimos em relação à Europa. Antes, eram cinco anos de atraso”, compara Maluf. É um filme que todos já viram!

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Abismo tecnológico crescente

O executivo da ABVE também chama atenção para o fato de o lobby da indústria ter conseguido postergar a exigência de um novo limite de emissões no Brasil, compatível com o programa Euro 6, inicialmente previsto para 2018. 

“Vamos fadar nossa indústria a ficar obsoleta”, volta a alertar Maluf. Enquanto ninguém se mexe, já estamos assistindo ao mesmo filme de 30 anos atrás, às vésperas de a Gurgel fechar, encerrando os planos de uma indústria automotiva brasileira original, capaz ganhar o mercado externo: 

“De 1988 a 1993, as multinacionais voltaram-se decididamente para os veículos de maior porte, desempenho e valor. Carro no Brasil, por causa da crise econômica que vinha castigando o país, dos impostos e da perda do poder aquisitivo da classe média, vítima de uma inflação descontrolada, voltou a ser objeto de luxo”, narra o jornalista Lélis Caldeira em seu livro.

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Não há dúvida nenhuma de que nosso país tende a virar um mercado no qual as gigantes do setor automotivo vão despejar, nos próximos anos e por preços cada vez menos acessíveis, aquilo que não têm sequer coragem de expor nos salões dos revendedores europeus e norte-americanos. 

Os lançamentos chineses já se parecem naves espaciais quando comparados aos carros fabricados por aqui e, agora, a indústria descobriu que a África é um porto mais seguro que o Brasil. 

Os alertas são dados a cada semana, mas a inércia é mais forte que todos nós. O mais recente lançamento nacional, o Jeep Commander, tem nos sete lugares seu grande trunfo e o mesmo predicado comercial destacado no extinto Zafira, da Chevrolet, quando foi lançado há exatos 20 anos, por R$ 32.490.

Se as multinacionais ainda estão no Brasil, é porque vendem o mesmo produto de duas décadas atrás, por um preço seis vezes maior, e porque, por enquanto, ainda compensa. Mas, se nada mudar, poderemos chegar ao dia em que todas fecharão suas fábricas e passarão a trazer produtos de fora que pouquíssimos poderão comprar aqui.

Imangens: Commons/ Wikimedia e Divulgação

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