Toyota disfarça perdas de R$ 343 bilhões com “novo” motor
Propulsor a hidrogênio é apenas 25% mais eficiente que os atuais e não freará virada da eletromobilidade
A paixão do brasileiro por carros faz com ele enxergue uma “Virgem Maria” em cada marca e um “Cristo” naquelas que, não raramente, são obrigadas a assumir que trapaceiam nas certificações de emissões, potência e segurança. A Toyota, por exemplo, assumiu há menos de 15 dias que vinha fraudando dados referentes a poluentes, potência e torque de seus propulsores.
“Estendemos nossas sinceras desculpas aos nossos clientes e todas as partes envolvidas e, como responsável pelas empresas do grupo, tomarei medidas. Eu realmente sinto muito”, disse o presidente da companhia e bisneto do seu fundador, Akio Toyoda, reconhecendo a picaretagem – não há outro adjetivo que eu possa usar.
O escândalo fez tão mal à imagem da montadora que, rapidamente, foi criado um factóide para desviar a atenção dos incautos. A Toyota ressurgiu das cinzas, sete dias depois, com um motor a combustão interna movido a hidrogênio e gasolina sintética, em tese tão verde quanto os elétricos – resta saber como é que a novidade foi certificada. Trata-se de uma mentira que vem sendo contada há pelo menos uma década e que, agora, é trazida à baila para desviar o foco. Proposital e/ou infelizmente, no Brasil, todos morderam a “isca”.
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“Foi uma encenação meticulosamente coreografada”, resume o jornalista Hans Greimel, editor asiático da “AutoNews”, que esteve em Tóquio para cobrir o “Multipathway Workshop” em que a tecnologia foi apresentada como diversionismo.
“Toyota e suas ‘aliadas’, Mazda e Subaru, organizaram uma maratona para apresentar sua brilhante visão de como perpetuar a combustão interna na era dos EVs. Os presidentes-executivos (CEOs) dos três fabricantes, juntamente com seus diretores técnicos, formaram uma rara frente unificada, fora de sincronia com grande parte da indústria automotiva global. Só a sessão para jornalistas durou três horas, incluindo uma infinidade de protótipos e maquetes”, detalhou Greimel.
Enquanto o chefão executivo da Toyota, Koji Sato, apresentava uma proposta de múltiplos caminhos para a neutralidade em emissão de carbono, defendendo que “a transição para um futuro mais limpo fundada apenas nos EVs será lenta e hesitante”, muitas perguntas ficaram, simplesmente, sem resposta, já que o objetivo era abafar o escândalo das fraudes.
Sato revelou um otimismo injustificado nos combustíveis futuristas e, diante da pressão dos acionistas, apelou para a salvação de empregos – que é a mais cínica das falácias de que os neoliberais lançam mão, quando anteveem a falência.
“Detalhes sobre prazos, custos, valores de investimento, ganhos de eficiência e planos para sinergias industriais ficaram confusos ou, simplesmente, não foram abordados”, pontua Hans Greimel, da “AutoNews”.
Para quem não tomou ciência dos fatos, o Ministério dos Transportes japonês encontrou irregularidades em seis testes na Toyota: de colisão frontal offset, que avaliam o grau de proteção dos passageiros; de desempenho de proteção de cabeça e pernas de pedestres; de colisão traseira e potência de motores.
“Embora a Toyota afirme que realizou alguns testes sob condições mais rigorosas do que as exigências nacionais, o ministério concluiu que não era esse o caso”, reportou Yomiuri Shimbun, do “The Japan News”.
Só 4% do hidrogênio é verde
Denominado “Engine Reborn”, o movimento encabeçado pela Toyota – e caninamente seguido por Mazda e Subaru – promete uma nova geração de propulsores, menores, mais limpos e potentes. Para crer neste “renascimento”, o sujeito precisa, primeiro, ser cegamente apaixonado por carros e, segundo, acreditar que novos modelos híbridos a hidrogênio produzirão a mesma quantidade de dióxido de carbono durante a sua vida útil que um EV.
Obviamente, esse cálculo só faz sentido tendo como base todo um ciclo, da extração do gás natural (a partir do qual o hidrogênio é obtido) ao tanque e da geração termelétrica de energia, perpassando toda a cadeia de fornecimento e manufatura, desde a estamparia até a mineração de produtos químicos para baterias veiculares.
Para evitar que leitor seja facilmente enganado, listamos alguns dados fundamentais para o desvelamento da mentira, começando pela oferta de hidrogênio para uso veicular que, hoje, provém majoritariamente (47%) do gás natural – outros 27% provêm do carvão e 22% é subproduto do petróleo, tendo tantas emissões nos seus processos produtivos como o refino do combustível convencional.
Só 4% do hidrogênio é, efetivamente, verde e obtido por meio de eletrólise. “Na prática, apenas cerca de 1% da produção global de hidrogênio é feita por com energia renovável e a variante eletrolítica permanece limitada a projetos e demonstrações”, explica o diretor do Centro de Inovação e Tecnologia da Agência Internacional de Energia Renovável (IRENA), Roland Roesch.
Pior, de acordo com a Federação Europeia para o Transporte e o Meio Ambiente (T&E), células a combustível de hidrogênio são, atualmente, 2,3 vezes menos eficientes em termos energéticos do que as baterias dos EVs, com uma projeção de queda deste déficit para duas vezes, nos próximos 25 anos. Já a gasolina sintética é quatro vezes menos eficiente e não há perspectiva de melhora até 2050.
Ou seja, os tais motores revolucionários da Toyota queimam combustíveis piores que os atuais. E ainda há outro dado, importantíssimo: hoje, a produção global de petróleo é de 4 bilhões de toneladas (4.000.000.000.000 de quilos) anuais, enquanto o consumo mundial de gasolina é da ordem de 20 bilhões de litros, por dia!
Gasolina por R$ 55, o litro
“Para os mais ingênuos e os negacionistas, o ‘e-combustível’ é o substituto óbvio, já que poderia ser usado pelos automóveis atuais e teria uma rede de distribuição prontinha”, conta o professor James Morris, pós-doutorado (PhD) em filosofia da comunicação e coordenador do curso de mestrado na University of London.
“Na prática, a própria eFuel Alliance – formada por gigantes das indústrias automotiva e do setor de energia como a Liebherr, ZF, Bosch, Repsol, Mahle, ExxonMobil, Siemens Energy, entre outras – vê o produto sintético como alternativa para mistura gradual aos combustíveis fósseis e não para transição imediata. A expectativa do consórcio é para uma mistura de apenas 4%, até 2025, indo a 12%, até 2030, e chegando a 100%, apenas em 2050”, detalha Morris.
Se fosse vendido na bomba do posto, um litro de gasolina sintética que a Porsche produz, no Chile, não sairia por menos de R$ 55 – algo que nem o governo Bolsonaro e seu inestimável ministro Paulo Guedes conseguiram.
Da usina que a marca possui, em Punta Arenas, em parceria com a chilena Highly Innovative Fuels (HIF), os quase 760 mil litros (o equivalente a 25 caminhões-tanque de média capacidade) produzidos anualmente serão usados exclusivamente em competições automobilísticas e quem ainda acredita na ‘fake news’ de que este tipo de combustível é a salvação dos motores térmicos, vai aí outro dado: o consumo diário de gasolina, etanol e gasóleo no Brasil, em 2023, foi de 400 milhões de litros.
Desenhando: só no Brasil, consome-se 355 vezes mais combustível, em um único dia, do que a Porsche produz no Chile em um ano!
Mas a Toyota se desdobra para distorcer os fatos e desviar as atenções da fraude. “Os EVs não têm emissões, enquanto circulam pelas ruas, mas a fonte de eletricidade e as emissões durante seus processos de produção também devem ser levadas em consideração, no seu impacto ambiental ao longo de toda a vida útil do veículo”, pondera Koji Sato, CEO da Toyota, tentando convencer os idiotas e que EVs e modelos híbridos são equiparáveis, já que os primeiros emitem mais carbono para fabricação das suas baterias.
“Assim, os veículos híbridos podem gerar mais emissões durante o funcionamento, mas menos em termos de produção e fornecimento de energia”, conclui Sato, usando um sofismo que, apesar da indigência filosófica, é suficiente para convencer quem não sabe tirar uma raíz quadrada com lápis e papel.
Nada de revolucionário
Na prática, não há nada de revolucionário nos dois motores turboalimentados, de 1.5 litro e 2.0 litros, que a Toyota anunciou com toda pompa e circunstância, como se tivessem reinventado a roda. Ambos só recebem a chancela “verde” quando combinados a uma unidade elétrica, formando um trem de força híbrido.
O primeiro, promete a mesma potência de um propulsor aspirado de 2.5 litros (grandes coisas), com um tamanho até 20% menor e 10% mais leve, ocupando menos espaço no cofre, enquanto o segundo promete 25% mais eficiência que seu equivalente atual. A revolução estaria, então, no uso flexível de combustíveis eletrônicos, gasolina sintética, biocombustível ou, eventualmente, hidrogênio. Parece piada, mas a tão alardeada “revolução” se justificaria por isso – e nada mais.
O fato é que existem setores econômicos sobre os quais os fabricantes de automóveis, a Toyota inclusive, exercem pouco ou nenhum controle, como os de energia, mineração ou mesmo o transporte marítimo de seus produtos, singrando os mares.
Pior, as fraudes nas certificações de emissões e segurança colocaram Akio Toyoda na marca do pênalti para dois dos maiores grupos de acionistas da companhia, que já se manifestaram contrariamente à renomeação do executivo para a presidência do conselho diretivo que ele lidera há mais de uma década.
Desde 22 de março, quando a capitalização de mercado da Toyota chegou a US$ 344 bilhões (o equivalente a R$ 1,84 trilhão), seu valor caiu mais de 18,5% (perda de R$ 343 bilhões), para US$ 280 bilhões – no mesmo período, a BYD valorizou 6%.
De concreto, mesmo, a Toyota vem implementando uma “reinicialização” industrial, liderada pelo diretor de produção, Kazuaki Shingo, que adota novos processos de manufatura para EVs, nominalmente a hiperautomação e o gigacasting que já são adotados pela Tesla.
São avanços que garantirão menores custos a partir de 2026, com o único objetivo de aumentar as margens de lucro e os fluxos de receita com serviços – já o consumidor apaixonado, coitado, irá pagar cada vez mais caro por modelos “enxutos”, cuja grande evolução será garantir maiores retornos para os investidores.
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Este texto contém análises e opiniões pessoais do colunista e não reflete, necessariamente, a opinião da Mobiauto.