Por que a Jeep está desistindo da China, o maior mercado do mundo
Marca americana demorou mais do que devia em plano de eletrificação, perdeu mercado e espaço no país da Grande Muralha
Ao que tudo indica, a Stellantis, quinto maior grupo automotivo do mundo, que reúne as marcas Jeep, Fiat, Peugeot, Citroën, Alfa Romeo, Chrysler, Dodge, DS, Lancia, Maserati, Opel, RAM e Vauxhall, encerrá sua produção doméstica na China.
Dando este passo para trás, a gigante multinacional se blinda de crescentes tensões geopolíticas, justo quando fabricantes ocidentais perdem participação de mercado chinês para startups locais. Por outro lado, deixará de competir no maior e mais concorrido mercado do mundo.
O presidente-executivo (CEO) da Stellantis, Carlos Tavares, voltou a falar em asset-light – estratégia de negócios em que a empresa mantém a menor quantidade possível de ativos, apenas aqueles de fato necessários para conduzir suas operações – para justificar o recuo.
“Podemos seguir competindo na China, importando veículos da Europa e dos Estados Unidos. Não estamos certos sobre nosso futuro, no país, a médio e longo prazos”, declarou Tavares, durante o Salão do Automóvel de Paris (Paris Auto Show), encerrado no último domingo (23).
Sem popularização no mercado
O CEO do grupo, na verdade, tenta esconder uma dura realidade: “A Stellantis não consegue estabelecer um mecanismo operacional adaptado ao ambiente chinês, altamente competitivo. Sem isso, não tem como reverter as perdas contínuas dos últimos anos”, disse o presidente da megaestatal Guangzhou Automobile (GAC), Qing Hong Zheng.
A GAC e a Stellantis tiveram uma joint venture local, entre 2010 e julho deste ano, para produção de modelos da Jeep, quando o grupo ocidental concluiu que era melhor encerrar a parceria, culpando “a interferência cada vez maior dos políticos locais no mercado” – palavras de Carlos Tavares à “Bloomberg”.
“A Jeep misturou política e produção de automóveis, criando um pesadelo para si mesma”, avalia o diretor executivo da ZoZo Go, consultoria que dá suporte local para investidores, montadoras e fornecedores sobre EVs, Michael Dunne.
Só em 2021, as vendas dos veículos produzidos em parceria com a GAC caíram 50%, o que vai na contramão do anúncio da própria Stellantis, que planejava que suas receitas na China chegariam a 20 bilhões de euros (o equivalente a R$ 105 bilhões) até 2030.
“Estamos no início do fim da era das joint ventures na China, que é o maior mercado do planeta, de onde nenhuma marca quer sair. Mas os consumidores chineses já sabem que podem comprar um veículo muito bom de fabricantes locais, e veem gigantes como General Motors e Volkswagen como potências de ontem”, acrescenta Dunne.
O consultor lembra que, há mais de uma década, o CEO da então FCA (Fiat Chrysler Automobile), Mike Manley, já tinha criado polêmica ao dizer que a Jeep fabricaria todos os seus modelos na China.
Apesar do desempenho ruim em 2021, a Stellantis informara a seus acionistas no último mês de janeiro que melhorara seus negócios atrás da Grande Muralha.
Curiosamente, o divórcio acontece na China seis meses depois de a Stellantis anunciar, também em janeiro, que iria aumentar sua participação na joint venture de 50% para 75%, o que foi muito mal recebido pela GAC.
Com menos de 1% de participação no mercado chinês, a Jeep procura reorganizar sua estratégia no país, mas as falas de Tavares na França pegaram de surpresa agora a Dongfeng, que mantém parceria com a antiga PSA (Peugeot Citroën) e se diz surpresa com o revelado no Salão de Paris.
“Estamos surpresos, porque nunca fomos comunicados sobre esta intenção por parte da Stellantis. Nossa joint venture acumula resultados positivos nos últimos 23 meses e nós, chineses, fizemos um grande esforço, contribuindo decisivamente para este crescimento”, declarou o presidente da Dongfeng, Zhu Yanfeng.
O que está muito claro é que, na China, a palavra de um homem de negócios não pode fazer curvas e a retidão é uma condição indispensável para o cumprimento do acordado, atrás da Grande Muralha.
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Atraso no segmento de elétricos
Em sentido oposto ao aventado por Tavares, BMW e Volkswagen aumentaram suas participações em joint ventures com parceiros chineses nos últimos anos, especialmente depois que o país afrouxou as regulamentações que anteriormente impediam as montadoras estrangeiras de deterem a maioria do negócio.
Só para os primeiros seis meses deste ano, a Stellantis reconhecerá perdas de quase 300 milhões de euros (o equivalente a quase R$ 1,6 bilhão). “A marca Jeep continuará a fortalecer sua oferta de produtos na China, com uma linha de veículos elétricos (EVs) importados”, garantiu a Stellantis em um comunicado distribuído para apagar o “incêndio”
O fato é que, até o último mês de julho, as vendas de EVs na China foram amplamente dominadas pelas marcas locais, que responderam por 80% do volume comercial deste segmento.
Por outro lado, o mercado chinês é o termômetro global de eletrificação das montadoras e, por lá, as multinacionais ocidentais vêm suando a camisa, mas evoluindo muito lentamente em relação às startups domésticas.
“A Jeep está muito atrasada em termos de eletrificação. É um salto enorme e pensar que a marca vai pular, num estalo de dedos, para o topo de pirâmide, é muita ingenuidade”, avalia a analista executiva da Cox Automotive, que fornece soluções em marketing digital, varejo, atacado e finanças para o setor automotivo, Michelle Krebs. “Eles falam sobre o assunto como se não existisse concorrência neste segmento”
A Jeep parece, mesmo, viver em uma bolha, já que, na última quarta-feira (26), ressuscitou na China os grandalhões Wagoneer L e Grand Wagoneer L, este último um SUV com 5,75 metros de comprimento e três toneladas (3.040 kg).
Ambos são equipados com o motor Hurricane Twin-Turbo, de seis cilindros em linha, com até 510 cv de potência, mas é o consumo declarado de inverosímeis 9,7 km/l, para ciclo urbano – eu apostaria que, no uso diário, não chega nem à metade disso – que dá o tom paradoxal ao lançamento norte-americano.
“Ninguém pode dizer quando chegaremos ao ponto de inflexão em que os EVs ultrapassarão os modelos com motores térmicos, mas, até lá, eles terão um crescimento contínuo”, pondera Michelle.
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Primeiro ‘SEV’, só em 2023
Enquanto isso, o primeiro modelo 100% elétrico da Jeep, o Avenger, só começa a sair da fábrica polonesa de Tychy em 2023. “Esperamos dobrar nossas vendas europeias com este SEV [SUV elétrico], para a casa das 300 mil unidades anuais”, disse o presidente-executivo (CEO) da marca, Christian Meunier.
Parece um plano otimista, até porque a Jeep, com menos de 130 mil unidades vendidas no Velho Continente em 2021, viu seu volume comercial despencar 23,5% só nos últimos três anos. “Tivemos problemas de adaptação com nossas motorizações turbodiesel e não obtivemos nenhuma vantagem fiscal, o que acabou freando nossos negócios”, justifica.
Fato é que o atraso em eletrificar o portfólio pode custar caro em um futuro não tão distante. Seus modelos mais icônicos, que têm origem norte-americana, parecem condenados aos atuais motores de combustão e a única plataforma dedicada para EVs de que a Stellantis dispõe, para emprestar à Jeep, é a segunda geração da base eCMP, que deixaria todos seus SUVs no mesmo status de modelos como Peugeot e-2008 Citroën e-C4.
Ou seja: a Jeep terá que escolher entre preservar os atributos históricos que deram valor à sua imagem ou se “peugeotizar”, o que soa como um sacrilégio para os puristas. “A capacitação do Avenger foi dimensionada para o público europeu”, reconhece a chefona da marca por lá, Antonella Bruno.
Manter duas estruturas fabris, uma para produção de veículos convencionais e outra para EVs é inviável técnica e economicamente, lembrando ainda que os propulsores térmicos estão sentenciados à morte na Europa e Estados Unidos, onde as legislações avançam, cada qual a seu tempo, rumo à emissão zero.
E achar que um mercado como o brasileiro tem condições de subsidiar a estratégia global é mais ingenuidade. Estranho, mas, em 2017, a Jeep despontava porque tinha, sozinha, um valor estimado de mercado 20% maior que o de toda a FCA.
Foi surfando essa onda que, dois anos depois, em 2019, Christian Meunier – o mesmo de hoje – anunciou que “até 2022, todos os modelos da Jeep” seriam “eletrificados”. Ocorre que novembro e dezembro estão aí, e não parece que este compromisso será cumprido.
E assim a Jeep, que até outro dia era a menina dos olhos da Stellantis, vai se colocando em posição de fragilidade em uma fabricante que, só nos últimos 12 meses, perdeu 33% de seu valor de mercado.
Imagens: Divulgação/Stellantis e Divulgação/Dongfeng
Este texto contém análises e opiniões pessoais do colunista e não reflete, necessariamente, a opinião da Mobiauto.
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