Carros populares: um palpite sobre como será o futuro
Sinto enorme falta de carros populares no mercado brasileiro. Tanto que vou arriscar um palpite do que pode acontecer no futuro desse segmento. Mas, antes, preciso remontar ao ano de 1990, quando essa história teve seu ponto de partida.
O mercado começava a se abrir para os importados, mas as vendas totais no país estavam estagnadas havia vários anos na faixa de 750 mil unidades, muito em função das poucas opções convidativas em preços. Um Gol CL 1.6 peladinho saía em torno de US$ 10 mil.
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Eis que o governo federal cria uma lei que desonera o IPI de carros com motores de até 1.000 cm3. Com a tributação bem mais branda e a retirada predatória de equipamentos dos carros básicos – a primeira safra dos carros 1000 não vinha com retrovisor do lado direito e nem bancos reclináveis –, a ideia era posicionar esses modelos na faixa de US$ 7 mil.
Em 1993, uma nova legislação padroniza os chamados carros populares com o simbólico IPI de 0,1% e encaixa o Fusca (e a Kombi), abrangendo motores arrefecidos a ar de até 1,6 litro.
O mercado decola. É nesse período, inclusive, que a Fiat, pioneira no lançamento do primeiro Uno Mille, sai de uma quarta colocação nas vendas, atrás de Volkswagen, Chevrolet e Ford, e começa sua escalada rumo à posição de marca mais vendida, o que ocorreria anos depois. Naquele ano de 1993, o mercado brasileiro já ultrapassa a barreira de 1 milhão de unidades vendidas.
Essa primeira geração de carros com motores 1.0 era terrível dinamicamente. Muito lentos, usavam carburadores de corpo simples e 50 cv (ou menos), além de equipamentos de série compatíveis com os Fusca STD dos anos 70.
Só que mercadologicamente a estratégia dá certo. Vale enfatizar: esses modelos foram a primeira chance de milhões de brasileiros de adquirirem seu primeiro automóvel zero km. E isso não significava, como não significaria hoje, pouca coisa. Foram importantíssimos.
Testei todos. Desde o primeiro Uno Mille, passando por Gol 1000, Chevette Junior, Escort Hobby. Depois viria o Corsa, que foi um divisor de águas, até a chegada do Fiat Palio, outro marco importante nessa história.
Em 2000, inclusive, trabalhando na revista Motor Show, eu coordenei o maior comparativo do país: pusemos 22 carros 1.0 de marcas e modelos diferentes para rodar com mais de 60 motoristas dentro do Autódromo de Interlagos por 24 horas ininterruptas.
Andei muito de carro 1000 na vida.
Na semana passada...
Corta para os últimos dias de 2024. De férias com a família, em Salvador, eu aluguei um VW Polo Track no aeroporto. Confesso que havia um bom tempo que não rodava algumas centenas de quilômetros com um carro 1000, principalmente carregado. E quer saber? Eu não tenho um referencial tão fiel como no passado, quando era capaz de apontar fielmente as melhores opções sob cada tópico, visto que conhecia todos.
Esse Polo me agradou. Surpreendeu. Pode ser até que um Fiat Argo que custe os mesmos R$ 90 mil seja melhor em muitos aspectos. Confesso que estou por fora. Só que o modelo da VW me agradou. Daria para ter tranquilamente esse carro para rodar no dia a dia.
Os 10,3 kgfm de torque sustentam bem o tráfego diário. Foram insuficientes para a minha viagem, visto que estávamos em quatro pessoas e bagagem. Mas daria para tê-lo como carro urbano. E daria, sim, para usá-lo como um carro familiar, desde que você tivesse ciência das limitações de desempenho e se adaptasse para isso ao trafegar por estradas – exatamente como as gerações passadas faziam com os populares dos anos 90.
A pergunta que vem à cabeça é direta: por que o carro popular naufragou no Brasil??? Dos 70% das vendas totais em 2001, eles despencaram para cerca de 30% em 2016 e, neste ano, estacionaram na faixa de 50% das vendas, ainda que, atualmente, tenhamos que considerar que o motor 1.0, com o fenômeno do downsizing nas motorizações, deixou de ser uma alternativa para carros baratos, ganhou turbocompressores e equipa vários suves de entrada no mercado nacional. Essa fatia de 50% induz a erros interpretativos, portanto.
Carro popular, hoje, é Fiat Mobi e Renault Kwid, ambos na faixa de R$ 75 mil. Mais uma ou outra versão de Fiat Argo, VW Polo, Hyundai HB20, Chevrolet Onix (entre R$ 87 mil a R$ 90 mil) e fim de papo.
A única (boa) novidade nesse segmento, ultimamente, foi a chegada do Citroën C3, que estreou até mais barato que os subcompactos da Fiat e da Renault, e custa pouco mais de R$ 70 mil.
Por que parou? Parou por quê?
Protegendo as montadoras da acusação de que os carros populares estariam muito caros, o presidente da Anfavea, Márcio de Lima Leite, disse, meses atrás, que “um Fusca custaria hoje cerca de R$ 80 mil”.
Parece consensual, entretanto, que estão caros, sim. Se não caros, eles estão inadequados ao gosto do brasileiro, visto que os subcompactos Mobi e Kwid parecem soluções aptas a suprirem o meio corporativo, servindo às frotas. O C3 é a exceção que confirma a regra: trata-se do único carro com tamanho de carro (com o perdão pela vulgaridade) numa faixa mais acessível.
É até compreensível entender o porquê dessa escalada de preços, retornando à análise dos demais modelos (Onix, Polo etc), hoje na faixa de R$ 90 mil. Nas últimas décadas, esse segmento ganhou motores bem mais modernos, itens de conectividade, ABS, air bag duplo etc.
Só que a Citroën conseguiu fazer um hatch de 4 metros e posicioná-lo na faixa de entrada, como é o caso do Citroën C3. Ué, por que as outras não fazem também?
Simplesmente porque não querem. A Stellantis tinha uma questão estratégica a solucionar que era o reposicionamento da Citroën, que passaria a ocupar uma faixa de entrada do mercado. As outras montadoras, pelos últimos passos, têm mostrado que carro de entrada não é prioritário. Não sou eu que digo isso. São as ações delas.
Esse texto ainda mereceria mais um punhado de milhares de toques para abordar todos os ângulos incutidos nessa discussão. Mas vou encerrá-lo com três tópicos, baseados nessa escassez de novas opções.
1) O Brasil está cerca de 1 milhão de veículos aquém do volume de vendas que já teve no início da década de 2010, quando ultrapassou a marca de 3,6 milhões de unidades vendidas. E, em qualquer país do mundo, o volume só aumenta na base. Não será lançando suves 1.0 turbo de R$ 130 mil que o mercado irá retomar os volumes anteriores.
2) Sabemos o que acontece quando você abre uma brecha às marcas chinesas, como o que aconteceu com suves eletrificados de porte médio/grandes. As marcas sediadas no Brasil não tinham convictamente entrado nesse segmento. Vimos no que deu.
3) Já pensou se alguma chinesa descobre que há milhões de brasileiros doidos para comprarem hatches de 4 metros de comprimento, na faixa de R$ 70 mil?
Este texto contém análises e opiniões pessoais do colunista e não reflete, necessariamente, a opinião da Mobiauto.
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