Os perrengues de viajar de carro elétrico em um Brasil sem infraestrutura
Por Waldez Amorim*
Quando a assessora do grupo Top Car, rede de concessionárias especializada em veículos premium e de luxo, ofereceu o elétrico Audi e-tron para o final de semana, comecei a planejar uma viagem para Passo Fundo, cidade gaúcha que fica a cerca de 230 quilômetros da capital, Porto Alegre. O objetivo seria levar minha namorada, a mãe e o filho dela para visitar parentes.
Fui alertado até pela assessoria da Top Car de que a viagem poderia se tornar uma “aventura”, mas resolvi pagar para ver. A primeira missão seria encontrar um posto de recarga na cidade de destino, que fica no noroeste do Rio Grande do Sul, dias antes da viagem.
Afinal, se os quase 450 km de autonomia declaradas seriam mais que suficientes para o trajeto de ida, ainda seria preciso encontrar um local para recuperar a energia a fim de voltar sem correr o risco de uma “pane seca” no meio do caminho.
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Viagem foi realizada a bordo de um Audi e-tron
Desafio 1 – pesquisar pontos de recarga antes de sair
Encontrar uma estação de recarga no interior do Estado, mesmo sendo um município de porte médio, com mais de 200 mil habitantes, já se mostrou uma tarefa trabalhosa.
O primeiro link que encontrei foi o de uma matéria sobre uma loja de materiais de construção da região, que estava planejando instalar um local de recarga. Liguei lá e, após falar com alguns funcionários em mais de uma tentativa – eles não tinham uma informação precisa de imediato –, recebi no dia seguinte a notícia de que a tal estação ainda não estava pronta.
Aplicativo PlugShare, usado para localizar pontos de recarga em qualquer cidade do Brasil. Funciona bem, mas o problema é a estação estar funcionando de fato
Continuei a pesquisa, inclusive pelo aplicativo Plug Share, indicado pela assessoria da Audi para encontrar pontos de recarga na região ou próximo. Foi então que cheguei a um ponto de carregamento localizado no estacionamento Safe Park.
Novamente contatei o estabelecimento e a atendente, muito receptiva, confirmou a existência do ponto. Ufa! Inclusive, colocou-se à disposição para carregar o carro no dia de minha chegada, sexta-feira, e no domingo, quando voltaríamos para Porto Alegre. A princípio, meu maior problema estava resolvido.
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Desafio 2 – entender o carro elétrico e pegar a estrada
e-tron, teoricamente, proporciona uma autonomia acima de 400 km
No dia da viagem, fui buscar o carro e o responsável pela entrega, igualmente atencioso, informou que o veículo estava com 98% de carga da bateria, o que em quilometragem no quadro de instrumentos representavam 270 quilômetros.
Questionei o fato de o e-tron ter autonomia declarada de mais de 400 quilômetros, mas ele respondeu que a informação marcada levava em consideração o estilo de condução do motorista que o havia dirigido antes de mim.
Apesar de o próprio carro mostrar como a autonomia de um elétrico varia muito, dependendo das condições, fiquei tranquilo. Afinal, mesmo no pior dos cenários (os tais 270 km), a distância seria mais do que suficiente para chegar a Passo Fundo e levar o Audi até o posto de recarga.
De qualquer forma, o trecho de ida transcorreu sem problemas e chegamos ao destino depois de quatro horas e meia de viagem e com 60 quilômetros de autonomia, suficientes para ir até o estacionamento mencionado anteriormente e colocar o carro para carregar.
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Desafio 3 – encontrar um carregador rápido ou compatível
O e-tron usado em nossa aventura parado em uma concessionária BMW para recarga
No dia seguinte, fui até o local e tive a primeira surpresa negativa: o carregador não era compatível com o e-tron. Naquele momento, começaram as dúvidas de como seria possível voltar à capital Gaúcha.
Depois de algum tempo pensando e pesquisando em vão, resolvemos ligar para uma concessionária BMW da cidade que comercializa lá o também elétrico i3. O atendente nos informou que havia um ponto de recarga da Audi no shopping Passo Fundo, mas que, se quiséssemos, poderíamos carregar o e-tron na estação da própria loja gratuitamente.
Chegando ao local, mesmo com um carro da concorrência, fomos muito bem atendidos pelo supervisor de vendas e logo colocamos o carro para carregar. Lá, também ficamos sabendo que existem apenas dois modelos elétricos em circulação em Passo Fundo. Talvez isso explicasse muita coisa...
Quando deixamos o e-tron carregando, sua autonomia era de 20 quilômetros. Na volta, após oito horas, a autonomia constante no cluster era de 100 quilômetros, sendo que ainda faltavam 230 km para voltar à Porto Alegre, fora o que seria necessário para trafegar dentro da cidade.
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Recarga do tipo wallbox ajudou, mas não era rápida e autonomia aumentou de modo insuficiente para pegar o caminho de volta
Durante o restante da tarde, busquei alternativas para recarregar o carro. Afinal, deixar um modelo de R$ 575 mil carregando em ponto público na rua e em uma área de pouco movimento da cidade estava fora de questão.
Então, resolvi ir até o Shopping Passo Fundo conhecer os pontos de recarga existentes no local. Logo na entrada do primeiro piso do estacionamento, encontramos o tal ponto de recarga destinado especificamente à família Audi e-tron.
Shopping da cidade possui um carregador específico para elétricos da Audi, mas o carro não dispunha do cartão necessário para destravá-lo
Ao estacionar o carro, mais uma supressa: as tomadas que acompanham o carro que eu usava não serviam no ponto de carregamento. Procuramos os atendentes do shopping para saber se existia algum outro cabo por lá, mas alguns sequer sabiam que era possível carregar um carro elétrico no local.
Ao mesmo tempo, um amigo foi conhecer os pontos de recarga da montadora Volvo, mas as tomadas também não eram compatíveis.
Para nossa sorte, o eletricista responsável pela manutenção do shopping, com muita boa vontade, encontrou na sala dos colaboradores responsáveis pela manutenção do shopping um cabo compatível para carregar o nosso e-tron.
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Eletricista do shopping nos ajudou a achar uma tomada convencional para carregar o carro em modo (bem) lento
Desafio 4 – encontrar pessoas que saibam carregar um elétrico
Entretanto, ao ligar o carro na tomada... mais uma daquelas surpresas: nada aconteceu. Foi só aí que todos perceberam que seria necessário destravar o carregador com um cartão, que deveria estar no carro. Posteriormente, descobrimos que nem o responsável pela entrega do carro para mim sabia da existência desse cartão.
Sem opções, já que havíamos entrado na noite de sábado, decidi deixar o carro carregando durante noite, dentro do shopping, em uma tomada comum de 220 Volts, utilizada para carregar as plataformas usadas em trabalhos de altura. Assim, pagaria um pernoite no estacionamento e buscar o e-tron na manhã de domingo.
Desafio 5 – pegar o caminho de volta sem autonomia suficiente
Passadas 15 horas, ao abrir a porta do Audi, constatei que a autonomia havia subido para apenas 185 km. Faltavam, ainda, 45 quilômetros para chegar à capital gaúcha. Como não havia mais o que fazer, pegamos a estrada às 16:30 de domingo rumo a Porto Alegre, com a esperança de que a autonomia aumentasse durante as frenagens regenerativas.
Andando a maior parte do percurso atrás de caminhões e carretas, com o objetivo de reduzir a resistência do ar e ganhar alguns quilômetros de autonomia, cruzamos a cidade de Lajeado já com a autonomia baixa, em cerca de 30 quilômetros.
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Desafio 6 – encontrar um carregador ou assistência adequada na estrada
Posto da CCR em que paramos para tentar resolver o problema
Por volta das 20h, depois de rodar 130 quilômetros, próximo ao município de Fazenda Vilanova, a cerca de 100 km de Porto Alegre e com apenas 20 quilômetros de autonomia, paramos em ponto de Serviço de Atendimento ao Usuário da concessionária da estrada, a CCR.
Perguntamos se eles tinham algum gerador de eletricidade como os utilizados pelos bombeiros. Os atendentes disseram que no local havia máquinas que funcionavam a gasolina, mas que elas não produziriam eletricidade suficiente para recarregar o e-tron.
A saída, mais uma vez, foi apelar a uma tomada comum do posto de atendimento. Perto das 4h da manhã de segunda-feira, depois de deixar o -etron carregando por cerca de 8 horas, resolvi continuar a aventura. Naquela circunstância, o carro estava demorando de dez a 30 minutos para recuperar 1 km de autonomia.
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Atendentes da CCR que gentilmente nos ajudaram a encontrar outra tomada doméstica para uma nova recarga lenta
Havia, também, a esperança de usar melhor a recuperação da energia cinética dissipada nas frenagens. Porém, mesmo andando com o carro no modo “range”, de “autonomia” em inglês, a quilometragem exibida no painel despencava de forma assustadora.
Às 5h da manhã de segunda paramos em outro posto da CCR e “comboiamos” um caminhão da concessionária de pedágio que fazia ronda na estrada pelos próximos quilômetros. Quando o relógio marcava 5h30 da manhã, com cerca de 20 km de autonomia e faltando 31 km para chegar ao destino, parei novamente, agora em um posto de combustíveis.
Dessa vez, a tomada seria a mesma utilizada para ligar uma máquina de pegar ursinhos de pelúcia com uma garra após colocar moedas. Como a tomada era diferente, um dos atendentes do posto de gasolina gentilmente nos forneceu uma extensão para conseguir carregar o e-tron.
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Autonomia do e-tron passou boa parte da viagem assim: quase zerada
Desafio 7 – chegar ao destino com a autonomia no gargalo
Às 7h30, com mais 3 km de autonomia aparecendo no painel, chegando a 23 km de autonomia, a paciência acabou e parti para casa mesmo faltando 8 km para chegar em casa. Como o trânsito já estava mais intenso, seria possível aproveitar melhor os freios regenerativos a cada desaceleração.
Já em Porto Alegre, próximos à Arena do Grêmio, com 5 km de autonomia restantes e faltando 8 km para chegar em casa, veio a ideia de ligar na revenda mais próxima da Audi e perguntar se seria possível recarregar o e-tron.
Chegamos à concessionária Top Car mais próxima dali com apenas 3 km no marcador. Lá existe um carregador rápido, o que significa que em 10 minutos a autonomia do carro saltou para 50 km. E assim, depois de 17 horas para completar uma viagem de deveria ter durado 4h30min, chegamos em casa. Devolvi o e-tron no mesmo dia com 30 quilômetros de autonomia.
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Em nossa última parada, enfim num carregador rápido já de volta a Porto Alegre, a energia já estava no talo
Dessa forma, aprendemos que para viajar com um elétrico no Brasil de hoje é preciso muito mais do que planejamento, mas também paciência e sem hora para chegar. Principalmente quando saímos dos grandes centros rumo ao interior do país, mesmo em cidades longe de serem pequenas.
Se sobra boa vontade de muita gente que nos ajudou no caminho, a infraestrutura e o conhecimento sobre carros do tipo ainda são absolutamente escassos. Em um país de dimensões continentais e tão pouco preparado, viajar de carro elétrico é uma aventura daquelas que, com certeza, vão render muitos perrengues e histórias para contar.
*Waldez Amorim é jornalista especializado na área de carros há 19 anos, e colabora atualmente com a seção Autodefesa da revista Quatro Rodas.
Imagens: Waldez Amorim/Mobiauto e Divulgação
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