Carro que você compra tem quase 300 impostos e taxas embutidos
O sistema tributário brasileiro é um dos mais regressivos no mundo. Concentra boa parte de sua arrecadação sobre a produção de bens e serviços ou sobre o consumo das famílias. Nem itens de primeira necessidade, como alimentos da chamada cesta básica, são poupados. Isso sem falar nas alíquotas de Imposto de Renda há anos sem atualização.
Se a carga tributária nacional fica em torno de um terço do PIB, segundo dados oficiais do governo, na prática um trabalhador ou trabalhadora que ganha um salário-mínimo terá entre 40% e 50% de sua renda mensal comprometida apenas para pagar impostos, de acordo com cálculos da OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
E quanto maior o nível de industrialização de um produto em nosso território, maiores as chances que ele forme por trás uma verdadeira bola de neve de impostos, taxas e encargos, muitas vezes incididos de maneira repetitiva ao longo de mais uma etapa da manufatura. É o que acontece com a indústria automobilística.
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Conforme levantamento que a Anfavea (Associação Nacional das Fabricantes de Veículos Automotores) deve revelar nas próximas semanas, e ao qual a Mobiauto teve conhecimento em primeira mão, o preço final de um carro ao consumidor possui nada menos que 296 impostos e taxas embutidos, levando-se em consideração todas as etapas da cadeia produtiva.
Não estamos aqui defendendo os preços dos carros praticados no Brasil. Longe disso. As etiquetas estão subindo em ritmo talvez jamais visto desde o início do Plano Real, e nossa redação vem demonstrando preocupação quanto a isso constantemente. O foco aqui, porém, é entender como funciona a insana tributação sobre um produto industrializado em nosso país, ainda mais um tão complexo quanto um automóvel.
Cássio Pagliarini, ex-diretor das marcas Renault e Hyundai no Brasil, e atual consultor associado da Bright Consulting, empresa especializada em consultorias na área automotiva, explica que nossa cadeia de tributação é tão complicada que obriga fabricantes a investirem departamentos de contabilidade apenas para interpretar a legislação e tentar reduzir o peso da carga tributária sobre a produção.
“O número de impostos é absurdo e os governos trabalham com isenções e benefícios fiscais para compensar isso em várias etapas do processo. Se você paga um determinado imposto numa etapa da produção, tem direito a deduzir o valor desse mesmo tributo em outra etapa, e as fabricantes tentam usar isso ao máximo. Mas como ter esse controle tão específico e certeiro sobre mais de 2.000 componentes de um automóvel? É coisa de maluco”, resume.
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Impostos sobre impostos
Não basta pagar impostos na produção e na venda. Ao transportar um carro da fábrica até a loja, haverá tributos embutidos em pedágios e combustível, além do IPVA dos caminhões-cegonha
A lista de quase 300 impostos, taxas e encargos sobre o preço de um carro zero-quilômetro inclui desde impostos bem óbvios para o comprador mais atento, como o ICMS e o IPI que incidem diretamente sobre o valor final do carro faturado, até taxas que afetam o valor final do produto indiretamente.
Na fase de produção, por exemplo, a fabricante pagará quase 40% de encargos e impostos sobre as contas de luz, água e telefone, incluindo ICMS e PIS/Cofins. Estes dois últimos tributos, aliás, são novamente cobrados sobre o valor final do veículo, e formam bons exemplos do chamado efeito cascata.
Isso sem falar que ICMS e PIS/Cofins também aparecem nas tarifas de energia elétrica e água das empresas que fornecem componentes para as fabricantes, assim como nas das empresas que fornecem matérias-primas a essas fornecedoras.
No caso do PIS/Cofins, é ainda pior, pois estamos falando de um efeito cascata explícito. Além do cenário exposto nos parágrafos acima, essa dupla de tributos é aplicada diretamente sobre o preço das matérias-primas vendidas no país, como um metal usinado. Depois, incide sobre um jogo de rodas que será produzido com esse metal e fornecido a uma montadora. Por fim, incide sobre o valor do veículo pronto.
Somadas todas as etapas da tributação direta mais a indireta, envolvendo os serviços mencionados acima, chegamos a um cenário em que um mesmo imposto é cobrado mais de dez vezes ao longo da cadeia. Entendeu agora por que se chama efeito cascata?
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Outros tributos sofrem o fenômeno de maneira velada, como o ICMS. Teoricamente, ele é cobrado apenas no faturamento final do veículo, mas antes permeia as já referidas prestações de serviço de água, luz e telefonia, entre outros serviços. Os exemplos de tributos do tipo monofásico, como o IPI, este sim incidido somente no valor final do veículo, são escassos.
Ainda na fase de produção, recolhem-se os polêmicos encargos sobre a folha de pagamento dos funcionários. E tanto os pedágios quanto o combustível pagos para transportar peças possuem sua carga de impostos embutidos. Ah, e se um componente vier importado, estará isento de Imposto de Importação, mas pagará um acréscimo de 25% sobre o frete referente ao chamado AFRMM (Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante).
Quando o veículo fica pronto na fábrica, transportá-lo até a revenda gerará novos custos logísticos recheados de tributos, como o IPVA pago para fazer rodar os caminhões-cegonha e, novamente, os encargos atrelados aos preços dos combustíveis e o ISS-QN, um imposto específico sobre pedágios.
E olha que a parte de distribuição gera benefícios fiscais para a fabricante se ela concentrar toda a operação, justamente para evitar fraudes (essa etapa é tida como a mais difícil pela Receita Federal de se rastrear). Aqui temos mais um caso em que o imposto é pago antes para ser posteriormente restituído.
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Até chegar à concessionária, carros passam por um longo caminho entre produção, distribuição e... tributação
Antes da chegada do carro à loja, no faturamento, são recolhidos os impostos do automóvel enquanto produto final: IPI (cuja alíquota varia entre 7% e 25%, a depender da motorização), ICMS (que varia de estado para estado. Em SP, está em 14,5%) e PIS/Cofins (até 11,6%).
“A metodologia de cada imposto também muda”, explica Pagliarini. “O ICMS, por exemplo, é calculado com base num valor que inclui IPI e PIS/Cofins. Ou seja, um imposto faz aumentar o valor do outro”, completa.
Recentemente, a própria Anfavea divulgou um levantamento no qual um carro de R$ 100.000 com motor entre 1.1 e 2.0 flex geraria R$ 14.500 de ICMS, R$ 8.343 de IPI e R$ 8.798 de PIS/Cofins no estado de SP, totalizando R$ 31.641 em impostos (sem contar os encargos carregados durante toda a fase de produção e distribuição).
Além disso, o comprador pagará mais 4% (ou R$ 4.000) de IPVA para licenciá-lo e mais R$ 1.600 de IOF para financiá-lo, caso dê entrada de 50% do valor e resolva parcelar o resto. Para o lojista, são mais R$ 1.000 de IOF em caso de financiamento. Por fim, para contratar um seguro, a alíquota de ICMS é de mais 7,38%.
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Carro importado e usado também paga, mas exportado é isento
Fabricantes ficam isentas de boa parte dos impostos na hora de exportar os carros produzidos no Brasil
Como chegam de fora prontos, veículos importados “pulam” algumas etapas desse processo, mas pagam o chamado Imposto de Importação, calculado em 35% do FOB (“free on board”), o valor pelo qual o carro foi faturado ao sair do porto de origem. Além dele, há tarifas de capatazia, o já referido frete da marinha mercante e encargos sobre os postos de trabalho portuário. A partir daí, o preço do veículo sofrerá a mesma incidência de taxa e tributos na logística até a concessionária e no faturamento para o cliente, incluindo IPI, ICMS e PIS/Cofins.
Na hora de revender o automóvel, seja nacional ou importado, surpresa! Mais um imposto: 3,91% de ICMS (estado de SP). No entanto, quando falamos em exportação, o governo isenta as fabricantes de IPI, ICMS e PIS/Cofins, para melhorar a competitividade dos carros nacionais no exterior.
Ainda assim, haverá resquícios de todos esses outros impostos cobrados ao longo do processo produtivo. Alguns desses tributos as fabricantes conseguem reaver posteriormente, assim como benefícios fiscais de programas de incentivo como Inovar-Auto e Rota 2030. Porém, muitas vezes essa restituição pode levar anos ou simplesmente não acontecer. É o que vem levando a Audi a considerar o fechamento de sua linha de produção no país, alegando ter tomado um "calote" de mais de R$ 200 milhões do governo.
Cássio Pagliarini defende que só a simplificação do sistema tributário poderá resolver o gargalo. “Um sistema confuso como esse só dificulta a vida das empresas e do consumidor, e facilita evasão e fraudes. E ainda aumenta o risco de gente honesta ter que pagar por algum erro que cometeu sem querer”, argumenta o consultor.
“Não é nem discutir se o carro é caro ou barato, se paga muito ou pouco imposto... Precisamos simplificar esse sistema. Não estou falando nem de reduzir impostos, mas de tornar a cobrança mais racional e transparente, mesmo que a carga tributária seja mantida como está. Só a simplificação já ajudaria muito”, finaliza.
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Jornalista Automotivo