Guerra fria: carros elétricos chineses encenam nova tensão

Estados Unidos e Europa fecham as portas aos veículos chineses, que ampliam seu domínio sobre o resto do mundo, com Brasil na alça de mira
PK
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11.06.2024 às 17:56 • Atualizado em 12.11.2024
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Estados Unidos e Europa fecham as portas aos veículos chineses, que ampliam seu domínio sobre o resto do mundo, com Brasil na alça de mira

As animosidades político-ideológicas que opuseram os Estados Unidos e a extinta União Soviética dividiram o mundo durante a chamada guerra fria. Hoje a disputa pelo mapa-múndi é comercial e envolve um líder nascente muito forte, a China, que expande seus domínios enquanto os antigos donos da economia mundial tentam proteger seus terrenos – leia-se seus próprios mercados e o dos países dominados.

Nesse cenário os carros elétricos chineses ganharam protagonismo, aparecem no centro do campo de uma nova guerra fria. Isto porque são os produtos de altos volumes e de maior valor agregado que a China pode vender, com exportação adicional muito mais lucrativa do que “blusinhas” e outras “bugigangas” que já são de seu domínio absoluto.

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Nessa disputa por valor agregado os carros elétricos desenvolvidos por fabricantes chineses aparecem na ponta de uma longa cadeia de produção que também está sendo estrategicamente encampada pela China no mundo todo, deixando os tradicionais donos do mundo indignados com a ousadia do novo entrante poderoso da economia global.

Bilhões pela China no mundo

Para se ter ideia do quanto estamos falando, investimentos da China em outros países relacionados à produção de carros eletrificados e seus insumos chegou a US$ 28,3 bilhões somente em 2023, depois de quase US$ 30 bilhões em 2022, segundo dados do Rhodium Group China Cross-Border Monitor.

A maior parte destes recursos foi aplicada na Europa e na região do Oriente Médio e Norte da África. Em 2023 as duas regiões dividiram o primeiro lugar em investimentos estrangeiros da China na cadeia dos veículos eletrificados: foram US$ 7,6 bilhões cada região para fábricas de carros, componentes, baterias e seus insumos, como extração e refino de minérios. A Ásia vem na segunda posição com US$ 6,5 bilhões, enquanto América do Norte e América Latina empatam em terceiro com US$ 2,7 bilhões cada.

Engana-se quem pensa que a maior parte destes investimentos todos é para construir linhas de produção de veículos eletrificados. Na verdade, esta é a menor porção dos aportes, que somaram US$ 1,5 bilhão em 2023. O grosso do dinheiro, US$ 12,4 bilhões, foi para a fabricação de baterias e outros US$ 10 bilhões para produzir insumos para baterias, enquanto US$ 3,7 bilhões foram para mineração e refino de matérias-primas, como lítio, cobalto, níquel e outros metais raros.

Em importantes países em desenvolvimento – eufemismo para subdesenvolvimento – a China está investindo pesadamente na produção e no processamento de matérias-primas fundamentais para a fabricação de veículos elétricos.

Exemplo desse domínio da cadeia completa dos veículos eletrificados são os investimentos de US$ 13,9 bilhões que empresas chinesas, financiadas por bancos chineses, estão aplicando na Indonésia, país do Sudeste Asiático que detém as maiores reservas de níquel do mundo. A maior parte dos recursos está sendo injetada na indústria de metais e mineração. Estima-se que 90% das fundições indonésias de níquel já estão sob controle de capital chinês.

Internacionalização onde permitem

A indústria chinesa de veículos eletrificados está se espalhando por todos as regiões do mundo que permitem sua presença, especialmente América Latina, África e Sudeste Asiático, aproveitando a dependência econômica criada com exportações de commodities para a China – como é o caso da soja brasileira.

Na mesma Indonésia onde a China está dominando a cadeia de um importante insumo mineral para produção de baterias a BYD pretende investir US$ 1,3 bilhão para produzir seus carros elétricos.

A BYD é a fabricante chinesa que mais apresentou planos de internacionalizar suas operações até o momento: também está instalando no Brasil sua primeira fábrica completa fora da China e promete outras na Hungria e no México, colocando assim seu pé em quase todos os continentes.

Comparando com o resto do mundo o Brasil não tem recebido tantos investimentos chineses quanto pode parecer. A BYD investe cerca de US$ 1 bilhão, diluídos até 2030, para estabelecer linha de produção na antiga fábrica da Ford em Camaçari, BA, que começa a operar ainda este ano para montar toneladas de partes importadas da China. A ambição declarada sem rodeios é a de ser uma das três marcas de veículos mais vendidas do País até 2028 – hoje já é a décima, à frente de fabricantes muito mais tradicionais por aqui. Ao mesmo tempo a empresa estuda investir na mineração de lítio em Minas Gerais.

Intenção parecida tem a GWM com investimento anunciado de quase US$ 2 bilhões, prometidos até 2030, que ainda custam a sair do papel na fábrica comprada em 2021 da Mercedes-Benz, em Iracemápolis, SP. Após dois ou três adiamentos da data de início da produção e de definições flutuantes em relação a qual será o primeiro produto da linha brasileira, a fabricante promete começar a fabricar comercialmente o Haval H6 no primeiro semestre de 2025.

Há ainda outras montadoras chinesas com intenções de importar primeiro e fabricar depois no Brasil, como a O&J – braço da Chery que já tem investimento no País com a sócia Caoa – e a Neta.

A Rússia é outro mercado importante aberto à China. Com as barreiras comerciais impostas como resposta à guerra na Ucrânia por Estados Unidos e União Europeia, que obrigaram seus fabricantes a deixar de produzir ou exportar para o país, os russos tornaram-se os maiores importadores do mundo de carros chineses e estão estreitando seus laços com o governo de Pequim.

Barreiras contra suposta invasão

Com preços sempre abaixo da concorrência os chineses só não estão onde não são permitidos. BYD e GWM tentaram investir cerca de US$ 1 bilhão cada uma em fábricas na Índia, que se tornou o terceiro maior mercado mundial de veículos, com 5 milhões de unidades vendidas em 2023. Contudo o governo indiano barrou as duas iniciativas, devido a rusgas políticas e disputas territoriais que mantém há anos com a vizinha China, além do fato de querer transformar o país em um grande polo exportador.

Algo parecido acontece na Austrália onde o governo local alega perigo de segurança de dados para impor barreiras às importações de carros chineses ou instalação de fabricantes do país.

Na Europa os carros elétricos chineses estavam encontrando território para crescer, mas os fabricantes locais já estão fechando as portas para importações: a União Europeia abriu investigação contra concorrência desleal e poderá aumentar as tarifas de importação, mas assim como ocorre no Brasil alguns fabricantes chineses já tratam de oferecer investimentos em produção local nos países europeus periféricos, como é o caso da BYD na Hungria, para reduzir as barreiras.

Nos Estados Unidos o cenário é o mais restritivo para os chineses, que não são bem-vindos nem para importar nem para produzir localmente. Alegando concorrência desleal, recentemente, o governo Biden aumentou tarifas de uma série de produtos chineses manufaturados, incluindo carros elétricos, que passaram a pagar a absurda alíquota de 100% de imposto de importação.

Maior mercado, produtor e exportador do mundo

A China é atualmente o maior fabricante e maior mercado de veículos do mundo, com 30 milhões de unidades produzidas e praticamente o mesmo número de vendas internas em 2023, sendo 8,1 milhões deles elétricos e híbridos. Mas o crescimento acelerado tem seus custos: investimentos massivos em toda a cadeia de produção local nos últimos vinte anos criaram uma imensa capacidade ociosa. Estimativas dão conta que os fabricantes chineses podem fazer 50 milhões de veículos por ano.

Com tamanho excedente e produtos sensivelmente aprimorados nos últimos anos a China também se tornou o maior exportador de veículos do mundo, com 5,2 milhões de unidades embarcadas para outros países no ano passado, sendo que 63% deles são de marcas chinesas e 1,2 milhão, ou 23% do total, modelos híbridos e elétricos.

Estimativa da consultoria Alix Partner projetam que as exportações chinesas de veículos chegarão a 9 milhões por ano até 2030, o que elevaria a fatia global do país dos atuais 16% para 30%. Só esta previsão torna bastante compreensíveis os temores dos Estados Unidos, do Japão e da Europa de perderem a liderança dos mercados globais.

O maior mercado comprador de carros chineses é a Rússia, com cerca de 500 mil veículos em 2023, a maioria deles a combustão. E o segundo destino de maior volume foi o Brasil, com quase 42 mil unidades no ano passado, todos híbridos e elétricos.

Aliás este ano o mercado brasileiro tornou-se o maior do mundo para carros eletrificados chineses, superando a Bélgica: já somam 42,8 mil de janeiro a maio, superando o volume de 2023 inteiro, com crescimento de 510% sobre o mesmo período do ano passado.

Invasão eletrificada

A China se especializou com grandes vantagens no desenvolvimento e produção de veículos elétricos, que devem abocanhar cerca de um terço do mercado chinês este ano, aumentando o número de unidades vendidas para 10 milhões, contra 3,4 milhões na Europa e 1,7 milhão nos Estados Unidos, segundo projeta o IEA Global EV Outlook.

O salto elétrico chinês é impressionante: o número de veículos elétricos vendidos foi de zero em 2013, subiu para 1,1 milhão de unidades em 2020 e em apenas três anos cresce dez vezes.

E os chineses pretendem utilizar o resto do mundo para acomodar excedentes e ampliar seu domínio econômico e político em mercados emergentes com a bandeira de popularizar as novas tecnologias eletrificadas de propulsão.

Exemplo dessa estratégia é a BYD, que sozinha exportou da China 200 mil veículos elétricos e híbridos em 2023 e pretende dobrar este volume para 400 mil em 2024.

O problema, para os concorrentes de outros países fabricantes de veículos, é que os chineses têm os menores custos de produção do mundo, dominam a cadeia completa de componentes e insumos e ainda contam com incentivos do governo, na forma de crédito barato, subsídios e compras governamentais.

Em uma apresentação a analistas de bancos a Tesla – maior fabricante de carros a bateria do mundo que este ano deverá ser desbancada do posto pela BYD – admitiu que em tecnologia e escala de produção de veículos eletrificados os chineses já estão de três a cinco anos à frente dos fabricantes ocidentais, e dez anos adiante em custo. Ou seja: os fabricantes da China podem vender agora um carro a bateria por preço que a Tesla e outros só conseguiriam atingir em cerca de uma década.

Com tamanha diferença competitiva os Estados Unidos jogaram a toalha: o governo aumentou de 25% para 100% a tarifa de importação de carros elétricos chineses. O presidente Joe Biden justificou a medida dizendo que “os chineses não competem, eles trapaceiam”. Parece que, desta vez, o grande defensor do liberalismo e da livre competição global perdeu para um país comunista a guerra fria capitalista da eletrificação.

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* Pedro Kutney é jornalista especializado em economia, finanças e indústria automotiva. É autor da coluna Observatório Automotivo, especializada na cobertura do setor automotivo, e editor da revista AutoData. Ao longo de mais de 35 anos de profissão, foi editor do portal Automotive Business, editor da revista Automotive News Brasil e da Agência AutoData. Foi editor assistente de finanças no jornal Valor Econômico, repórter e redator das revistas Automóvel & Requinte, Quatro Rodas e Náutica.

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