Por que a indústria nacional quer antecipar a taxação dos carros elétricos importados
Esquentou a discussão sobre retomar para já a alíquota de 35% de imposto de importação para veículos eletrificados, a maioria absoluta importada da China. A tarifa, que de 2015 até dezembro passado foi de zero para modelos a bateria e de 4% para híbridos, começou a ser retomada em quatro fases a partir de janeiro passado e estava prevista para voltar aos 35% somente em julho de 2026.
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Mas a Anfavea, que representa os fabricantes instalados no País, pede ao governo a retomada imediata do teto máximo da tarifa, sob o argumento de que o crescimento acelerado das importações, estimuladas pelo imposto ainda baixo, está tomando o lugar da produção nacional e ameaça investimentos multibilionários já anunciados.
Do lado contrário os importadores reclamam de falta de previsibilidade nas regras e de injustiça tributária, rogando para si a contribuição que dão ao meio ambiente, pois ainda são os únicos a vender carros de baixa ou nenhuma emissão de CO2.
Na falta de um bom lado a escolher nessa disputa comercial melhor ficar com nenhum, ou com as razões parciais, pois ambos os lados têm argumentos ruins para taxar ou não taxar os carros eletrificados, que estão chegando às pencas da China, somando 51,7 mil emplacamentos no primeiro semestre, sendo 87% deles de apenas duas marcas: BYD [63%] e GWM [24%], que prometem começar a produzir seus modelos em fábricas brasileiras a partir do fim deste ano.
O lado ruim dos fabricantes
A Anfavea encontrou exemplos fora do País para justificar a retomada imediata do imposto de importação de 35% sobre carros eletrificados importados, alegando que outros países já tomaram medidas bem mais duras para barrar os veículos chineses elétricos em seus mercados, acusando a China de concorrência desleal por causa de concessão de subsídios aos seus fabricantes.
Enquanto o Brasil atualmente aplica alíquota de 18% sobre modelos a bateria – prevista para subir a 25% daqui a um ano e em dois a 35%, o máximo admitido pela OMC, Organização Mundial do Comércio – os Estados Unidos adotaram a inacreditável tarifa de 102,5%, e a União Europeia estuda elevar a alíquota para 27% a 48%, a depender dos incentivos que cada fabricante recebe do governo chinês.
Interessante sublinhar que nestes países existe a produção e venda de carros elétricos e híbridos há mais de uma década, também motivada por muitos subsídios a fabricantes locais.
Mas se na Europa e América do Norte já existe a indústria local de veículos eletrificados a ser protegida, falta este argumento à Anfavea, pois no Brasil ainda não são produzidos veículos leves elétricos puros ou híbridos plug-in, apenas os híbridos fechados da Toyota, mesmo assim com peso relevante de componentes importados.
O que a indústria quer, portanto, é dificultar a competição no mercado brasileiro de produtos importados que não são fabricados aqui, para assim proteger os carros a combustão que faz e pretende continuar fazendo no Brasil.
Apesar das promessas de investimentos de mais de R$ 100 bilhões nos próximos anos a justificativa é que a indústria nacional não tem recursos e nem a escala de produção necessária – leia-se mercado pequeno – para tornar viável o investimento na cadeia de fabricação de carros elétricos, como fez a China com boa ajuda estratégica do governo central, dominando todos os processos, da mineração de insumos ao fornecimento de baterias até o produto final.
Em outras palavras o que a indústria nacional está dizendo é que jamais conseguirá competir contra carros elétricos chineses e, portanto, precisa de alguma proteção para continuar produzindo no Brasil – ainda que a alíquota de 35% seja apenas a retomada de algo que sempre existiu no País desde os anos 1990, pois não está sendo solicitada nenhuma sobretaxação aos moldes do Inovar-Auto de 2012, por enquanto.
O lado ruim dos importadores
Enquanto a indústria pede proteção os importadores querem a manutenção de um privilégio: o de sustentar seu lucro com isenção de impostos sobre um produto de duvidoso benefício ambiental, vendido para um público que pode muito bem pagar mais por um automóvel que se enquadra na categoria de bem supérfluo.
Vamos combinar que a esmagadora maioria do público que compra um carro no Brasil não tem nenhuma motivação ambiental – se assim fosse só colocaria etanol no tanque de seus automóveis flex em vez de fazer contas para checar se não é mais compensador rodar com gasolina e emitir toneladas de CO2 fóssil sem nenhuma dor na consciência.
Quem compra um carro elétrico chinês o faz, em primeiro e segundo lugares, porque tem acesso a um modelo com mais tecnologia e preço já bastante similar ao de veículos a combustão mais caros produzidos aqui, na faixa dos R$ 150 mil a R$ 200 mil e além. Quem está comprando hoje também não tem muitas preocupações com o amanhã, vez que não parece pensar na revenda, na infraestrutura de recarga incipiente ou na confiabilidade do produto após os seus primeiros anos de vida, pois ainda não temos exemplos de como os carros a bateria envelhecem.
Mesmo para os poucos que acreditam estar fazendo um bem enorme à humanidade ao optar rodar de carro elétrico, ou às empresas que compram meia dúzia de veículos a bateria para cumprir propagandeadas metas de descarbonização, é preciso dizer que esta opção tecnológica ainda não fez nem cócegas nas emissões globais de CO2, que seguem aumentando – inclusive e mais ainda no país de onde são produzidos mais de 10 milhões de veículos elétricos por ano, a China.
Até porque os elétricos só não emitem nada no escapamento, mas jogam na atmosfera algumas toneladas de gás de efeito estufa quando suas baterias são fabricadas ou quando são recarregados de eletricidade proveniente de fontes fósseis, como as usinas chinesas a carvão, que fornecem algo como 70% da energia consumida por lá, segundo dados da IEA, International Energy Agency. Ensaios já comprovaram que um carro híbrido abastecido com etanol emite menos CO2 do que seu equivalente elétrico alimentado com a matriz energética da Europa, por exemplo, quando se considera as emissões do poço à roda, que inclui no cálculo todo o ciclo e produção e uso do combustível.
Portanto, no caso brasileiro, qualquer subsídio a carros elétricos ou híbridos a gasolina são pouco defensáveis, pois não são justificados pelo benefício ambiental, muito menos do social.
Discussão fora de foco
Diante dos argumentos a favor e contra a tributação de carros eletrificados importados o governo deveria dissipar o dilema focando no que realmente interessa: adotar soluções que garantam o desenvolvimento soberano do País e, a um só tempo, a necessária redução das emissões de carbono fóssil.
Nessas horas é dando que se recebe: seria o caso de proteger a indústria, conceder o aumento de imposto, mas somente com a exigência de contrapartidas, como por exemplo o repasse de certos benefícios ao preço final dos veículos, combinada com redução severa e obrigatória de emissões.
Uma maneira de se fazer isto seria adotar taxação mais acentuada de carros a gasolina ou flex, e incentivar o uso de etanol como solução pronta e já existente no País, com a oferta veículos que rodem unicamente com o biocombustível, o que faria efeito muito mais imediato, eficiente e amplo para reduzir e anular emissões do que incentivar carros elétricos.
Para os importadores seria mais justo beneficiar as empresas que prometem produzir seus carros no Brasil, como já é o caso de BYD e GWM, mas colocando um pouco mais de pressão para apressar o passo lento da produção nacional que ambas adotam, certamente para aproveitar ao máximo o benefício do imposto de importação reduzido.
Assim como foi feito no Regime Automotivo de 1995 ou no Inovar-Auto de 2012, as empresas que prometem produzir no País poderiam receber cotas de importação isentas da tarifa por prazo fixado até iniciar a operação local.
E, mesmo assim, é necessário impor metas de nacionalização, ou serão criadas grandes fábricas de montagem de toneladas de itens importados, apenas trocando a importação do carro montado pelo desmontado, o que desmonta parte importante da indústria automotiva, a de autopeças.
Se o governo brasileiro realmente quiser incentivar a industrialização – ou a reindustrialização – do País com a ajuda do setor automotivo precisa ampliar horizontes e ambições. De nada adianta uma indústria que só produz para as elites ricas, assim como não prospera um setor que só produz produtos de baixo valor para população de baixo poder aquisitivo. É preciso equilibrar os interesses em favor do objetivo maior: o desenvolvimento econômico inclusivo e ambientalmente sustentável.
* Pedro Kutney é jornalista especializado em economia, finanças e indústria automotiva. É autor da coluna Observatório Automotivo, especializada na cobertura do setor automotivo, e editor da revista AutoData. Ao longo de mais de 35 anos de profissão, foi editor do portal Automotive Business, editor da revista Automotive News Brasil e da Agência AutoData. Foi editor assistente de finanças no jornal Valor Econômico, repórter e redator das revistas Automóvel & Requinte, Quatro Rodas e Náutica.
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