SUVs e a evolução do mercado mataram os carros populares

Brasil já teve 30 versões de carros populares e hoje segmento é escasso
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02.10.2024 às 22:55 • Atualizado em 12.11.2024
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Brasil já teve 30 versões de carros populares e hoje segmento é escasso

O carro sempre foi sonho de consumo dos brasileiros, que muitas vezes só tiveram condições de comprá-lo usado. Em 1964, em pleno regime militar, houve o primeiro incentivo à compra de carros, e nascia o carro popular nacional. Com subsídios do estado, a Caixa Econômica Federal abriu uma linha de crédito para a população, que poderia adquirir seu carro novo com taxas de juros relativamente baixas.

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As fábricas correram contra o tempo, e sem muito critério, criaram os primeiros populares: VW Sedan (Fusca) Pé-de-boi, DKW Vemaguete Pracinha, Simca Profissional e Willys Teimoso.

 

Nestes veículos, tudo o que não estava na lei era retirado. Acredite caro leitor, no caso do VW Sedan por exemplo, eram eliminados frisos, cromados, emblemas, marcador de combustível, indicadores de direção (sim, as setas!), uma saída de escapamento, carpete, forro do teto, retrovisores externos, além de ser oferecido em apenas duas cores (cinza claro e azul claro, sempre com pintura sólida).

Se pareceu tosco para você, o Willys Teimoso era ainda mais espartano: ele perdia os mesmos itens do VW, mas seus bancos eram similares à cadeira de praia, sem espuma e não havia lanternas traseiras nas extremidades, apenas uma luz vermelha no centro da tampa do capô do motor, que era traseiro.

 

Essa luz tinha a função de lanterna, luz de freio e luz de placa, similar a lanterna de uma motocicleta CG-125 1976. Não havia lanterna dianteira, ou era farol aceso ou nada. Ah, não tinha farol alto. Mas ele oferecia três cores: cinza, preto e marrom. Uau!!!

DKW Pracinha e Simca Profissional eram mais dignos, mantendo quase tudo que as versões caras tinham, porém com acabamento mais espartano como os forros dos bancos e eliminação de alguns cromados.

 

No caso do Pracinha, o sistema Lubrimat responsável por misturar o óleo 2 tempos na gasolina era eliminado, ficando a encargo do motorista fazer os cálculos da mistura no ato do abastecimento. Muitos não viram isso como problema, pois os primeiros DKW eram assim mesmo.

Com aparências tão espartanas, e em um país onde “Meme” já existia no cotidiano desde sempre, os carros eram vistos como atestado de pobreza, e o programa do governo foi descontinuado em meados de 1966.

Entre os anos 60 e 80, a alíquota de imposto de IPI e ICMS era mais baixa para cilindradas de 1001 a 1600, ou seja, abaixo de 1000 e acima de 1601, o imposto era mais alto. Por isso os DKW tinham o emblema 1001 na lateral, alusão a 1001 cilindradas (!).

Preço de carro era complexo, e era comum um Fusca 1200 ser mais barato que um Willys Gordini, com 800 cilindradas. Isso explica também por que, em 1976, o Fiat 147 foi lançado com motor de 1050 cilindradas, sendo que no projeto italiano original o motor tinha 900 cilindradas.

 

Em 1988, João Amaral Gurgel apresentou o Gurgel BR-800, o primeiro carro 100% nacional. Este projeto nasceu para ser o carro da massa totalmente nacional, e conseguia ser barato por conta da alíquota de imposto. À época, Sr. Gurgel conseguiu junto ao governo a redução de IPI para 5% (nos carros de passeio o imposto chegava a 40%), desde que atendessem a alguns critérios: limite de até 650kg em ordem de marcha, e até 800 cilindradas.

Custando 726 OTN, equivalentes hoje a R$ 74.510,49, era muito mais barato que Chevette SL, segundo carro mais em conta naquele tempo, que custava 1130 OTN, ou R$ 115.973,64 hoje. Os valores foram corrigidos de OTN para Real pelo INPC (IBGE).

 

As grandes fábricas da época também pediram ajuda ao governo. Assim, uma nova portaria em 1990 possibilitou uma redução de 40% para 20% na alíquota do IPI vigente, viabilizando o lançamento do primeiro carro popular dos novos tempos e o início de uma sadia guerra entre as fábricas, beneficiando os brasileiros, que passaram a ter carros mais acessíveis.

O Uno Mille foi o primeiro a chegar no mercado. Baseado no Uno S, o novo popular teve alguns itens retirados, como servofreio, saídas de ar laterais no painel, câmbio de 5 marchas, reclinador do encosto do banco, apoios de cabeça, tampa do porta-luvas e acionamento elétrico do limpador de para-brisas.

 

Como opcionais, oferecia acendedor de cigarros, protetor para o motor e câmbio, bancos reclináveis com apoios de cabeça, câmbio de cinco marchas, filtro de ar adicional, limpador, lavador e desembaçador do vidro traseiro, protetor do tanque de combustível e servofreio. Seu motor era o antigo 1050 do Uno S a gasolina e Fiat 147, mas com a cilindrada reduzida para 994 cm³. Oferecia 48,8 cv de potência a 5.700 rpm e 7,4 kgfm de torque a 3.000 rpm.

A própria Fiat lançou um novo produto em 1991, o Uno Mille Brio, mais luxuoso e com melhor acabamento. Ele já oferecia volante espumado (o mesmo da versão CS), estofamento com tecido diferenciado, carpete azul, console e alavanca de câmbio diferenciada (também os mesmos da versão CS), e retrovisor do lado direito.

Havia também mudanças mecânicas: Além de um motor mais vigoroso graças a adoção de um carburador de corpo-duplo, ante o carburador de corpo simples da versão comum, o Brio possuía maior taxa de compressão (8,6:1 ante 8,5:1) e novo ângulo de abertura e fechamento das válvulas. Agora, o motorzinho de 994 cm³ tinha 54,4 cv de potência a 5.750 rpm e 7,7 kgfm de torque a 2.750 rpm.

No mesmo ano, chegou também o Lada 2105, ou Laika, um sedan 4 portas importado da Rússia, com design Fiat dos anos 60 (era derivado do Fiat 124) e ótimo custo-benefício. Agradou muita gente por seu bom espaço interno, vários itens de série, motor 1.6 de 73 cv de potência a 5200 rpm e 12 kgfm de torque a 3200 rpm e tração traseira. Tinha basicamente a mesma potência de um Chevette 1.6, mas era mais espaçoso e tinha o status de importado.

 

A GM foi a segunda nacional a entrar na disputa em 1992, mas com o que ela tinha na prateleira há 19 anos. Nascia o Chevette Junior, um projeto bastante ultrapassado com tração traseira e com uma potência liquida de dar sono.

Preciso ser honesto, pois a potência liquida em si era até melhor que a do Uno Mille. Enquanto o Fiat oferecia 48,8 cv a 5.700 rpm e 7,4 kgfm a 3.000 rpm em 994 cm³ de cilindrada, o Chevette Junior trazia 50 cv a 6.000 rpm com 7,2 kgfm de torque a 3.500 rpm, mas sua concepção antiquada resultava em um péssimo desempenho na prática, afinal ele não chegava a ter 38 cv na roda.

No final de 1992, o VW Gol 1000 chegava com seu motor AE-1000 (vulgo CHT), 50cv, mais disposição e muito mais moderno, e olhe que seu projeto já estava cansado, com então 12 anos. A Volkswagen já tinha o Gol AB9, vulgo Gol bolinha, no forno, aguardando o momento certo de ser lançado, afinal, estratégia de guerra não faltava nesta época.

 

Por último, nos idos de 1993 a Ford lançou o Ford Escort Hobby 1.0 com a mesma mecânica do Gol 1000 (tempos de Autolatina) e um pouco mais de espaço, completando o quarteto de populares das quatro fabricantes mais tradicionais da época (Chevrolet, Fiat, Ford e Volkswagen).

Graças a uma resolução do governo, ainda em 1993, os veículos com motor 1.6 boxer e/ou de tração traseira também recebiam o mesmo incentivo de redução de IPI (parece até que alguém foi privilegiado com isso). Esta redução permitiu a volta do VW Fusca, e a GM tratou logo de substituir o GM Chevette Junior pelo GM Chevette L, com motor 1.6 e muito mais disposição. Mas caro leitor, o mercado consumidor é também modista, e não entendia as vantagens de se ter um carro 1.6 com bom preço. A moda era mesmo ter um 1.0 (!).

A GM sabia que o Chevette não era mais competitivo, e já desenvolvia a sua versão do Opel Corsa desde que lançou o Chevette Junior, como em um jogo de xadrez, aguardou o momento certo para fazer sua jogada. Os planos eram lançar o Corsa apenas em 1995, mas com a movimentação da Volkswagen para lançar o Gol bolinha e da própria Fiat, que já desenvolvia o projeto 178 (o Fiat Palio), a Chevrolet antecipou o lançamento do carro em 1 ano.

 

A primeira unidade foi fabricada em 21 de setembro de 1993, quando o estoque começou a ser formado, e em 10 de janeiro de 1994 era lançado no mercado nacional o GM Corsa. A concorrência se mexeu e logo a Fiat lançou o Uno Mille ELX, “o popular de luxo” como ela mesmo o chamava. Com nova frente (igual as demais versões mais caras da linha Uno), novo painel, volante de 4 raios espumado, ênfase nas 4 portas e o ar-condicionado (opcionais) e um acabamento bem mais caprichado, o ELX manteve o Mille forte no segmento.

A GM respondeu com o Corsa GL, sua primeira versão mais luxuosa lançada também em 1994. E, meses depois, a VW lançava o Gol bolinha, que chegou primeiro nas versões 1.6 e 1.8 e, no início de 1995, 1.0 (1000i). Dessa forma, o VW passava a ser o principal concorrente do Corsa, que, nessa altura do campeonato, já tinha a opção da carroceria de quatro portas.

Com o Real equiparado ao Dólar e importações de carros em alta, outros populares entraram nessa guerra: Subaru Vivio, Peugeot 106, Renault Twingo, Asia Towner, Ford Fiesta (ainda espanhol), Daihatsu Cuore, Suzuki Swift e por aí vai. Alguns outros modelos abocanharam por quase 2 anos este mercado que só crescia.

Em 1996, foram lançados Fiat Palio e Ford Fiesta nacional, deixando a concorrência ainda mais acirrada e os consumidores com mais opções. A GM respondia com novas versões do Corsa e novo sistema de injeção eletrônica multiponto para os motores 1.0 e 1.4. Em renovação, saíam de linha o VW Gol 1000 quadradinho, VW Fusca 1600 e Ford Escort Hobby.

 

Em 1997, a Ford surpreendia a todos com o Ford Ka e seu design moderno, ótimo acabamento e excelente custo-benefício. Simultaneamente, a VW lançava os motores com injeção eletrônica multiponto, além do Hitork 1.0 16v, pioneiro no Brasil e sensação daquele ano.

E não parou por aí: a VW surpreendeu ao lançar o VW Parati 1.0 16v, o primeiro Station a entrar na guerra dos populares. Naquele ano, só o Gol 1.0 vendeu 251.615 unidades e os demais modelos 1.0 totalizaram 880.038 carros vendidos no país. Veja força dos populares em 1997:

Modelos

Versões

Unidades

VW Gol

8

251615

Fiat Palio

4

236957

GM Corsa

4

163956

Fiat Uno

5

92971

Ford Fiesta

2

79163

Ford Ka

1

48461

VW Parati

2

5335

Peugeot 106

2

1286

Suzuki Swift

2

294

Total

30

880038

A força dos populares em 1997

Em abril de 1998, o mercado tinha 30 versões de carros populares, entre modelos de 2 e 4 portas e com os mais variados opcionais. Veja:

Modelos

Qtde

Versões

Fiat Uno Mille

6

EX, SX e SX Young

Fiat Palio

4

ED, EDX

Ford Fiesta

2

1.0

Ford Ka*

1

1.0 i

GM Corsa

4

Wind, Super

VW Gol

8

Mi, Mi 16v, Mi Plus, Mi Plus 16v

VW Parati*

1

Mi 16v

Peugeot 106*

1

Soleil

Suzuki Swift

2

1.0 Hatchback

Asia Towner*

1

Luxo

Total

30

 


* Modelo com apenas uma variação: 2 ou 4 portas

A guerra estava prestes a receber mais competidores, e no decorrer do ano chegaram Fiat Siena 6 marchas e Palio Weekend 6 marchas, e, em 1999, uma nova explosão de novidades: novas versões do VW Gol, Ford Fiesta, GM Corsa, além de Corsa Sedan 1.0 8v e 16v, Corsa Wagon 1.0 16v, Peugeot 206, Renault Clio e o Palio Citymatic, primeiro 1.0 com sistema de embreagem automática opcional (leia mais sobre ele aqui).

 

 claro que se eu for citar todos os modelos lançados até hoje, esta coluna seria transformada em um e-book, mas eu quero mostrar é que, até então, o mercado crescia, e a demanda também. Os carros populares chegaram a corresponder a 69,8% das vendas em 2001.

Com a virada do milênio, a indústria nacional ganhou volume, e com isso, foi possível diluir o custo de desenvolvimento e de equipamentos extras. Passamos a ver uma corrida desenfreada por maior potência e equipamentos de conforto. Passou a ser muito mais comum ver um VW Gol 1.0 com ar-condicionado e direção hidráulica, equipamentos raros em 1996, por exemplo.

 

De acordo com a FENABRAVE, em 2003 o carro popular correspondia a 49,1% do mercado. Já em 2005 esse número caiu para 42,7% e, em 2010, correspondia a 34%. A partir dos anos 2010, novas regulamentações governamentais de segurança e de emissão de poluentes começaram a impactar os custos e, por consequência, os preços dos carros.

É claro que o consumidor ganhou e muito nisso, pois os carros passaram a ser mais seguros e mais econômicos. Em 2014, por exemplo, freios ABS e duplo airbag frontal passaram a ser obrigatórios, e a maioria dos carros já ofereciam ar-condicionado e direção assistida de série. Um novo estudo em 2015 mostrava que a participação dos populares despencava para 23,4%, e em 2020, apenas 12,7% dos carros 0 km eram populares.

O gosto do público também mudava, uma vez que o acesso a informação estava cada vez mais fácil graças à internet e aos smartphones. A conectividade era a bola da vez, e foi explorada por todas as marcas, onde mais um recurso passou a ser muito comum e requisitado nos veículos: central multimídia.

 

Raciocinemos, caro leitor: nos anos 80, um carro de luxo as vezes podia vir básico, sem opcionais obrigatórios hoje, e quando completo, trazia ar-condicionado, direção hidráulica, vidros elétricos, travas elétricas, sistema de som. Dependendo do modelo, poderia oferecer ainda os retrovisores elétricos, abertura elétrica do porta-malas, diferenciações estéticas e, as vezes, alarme.

Hoje, um carro básico trás pelo menos ar-condicionado, direção assistida, vidros elétricos e travas elétricas. Escolhendo um ou dois pacotes opcionais, traz também sistema de som e/ou central multimídia, retrovisores elétricos, algumas diferenciações estéticas e até mesmo câmbio automático.

 

Mas, além do trivial, todos saem hoje com freios ABS, Air Bag (pelo menos 2), além de muitas tecnologias de segurança, conforto e comodidade embarcadas, algo que só cresce com as novas regulamentações.

O carro popular deixou de existir na sua essência, tanto em recursos oferecidos, quanto em preço. E isso não é só para o consumidor final, mas também para as fábricas, já que o custo de produção é similar em vários modelos. E para carros ditos “populares”, a marca de lucro é bastante enxuta.

 

Em 2022, uma nova fase do programa de controle de emissões, o Proconve L7, passou a exigir até controle dos vapores de combustível emitidos durante o abastecimento, o que acelerou a despedida do mercado de vários modelos de projeto ou mecânica ultrapassada.

Agora, em 2024, são exigidos a obrigatoriedade de controles eletrônicos de estabilidade e tração e testes de impacto lateral para a homologação dos automóveis vendidos no país, além da obrigatoriedade das luzes de rodagem diurna (DRL), indicação de cintos desfivelados e ajuste de altura dos faróis. Tudo isso impacta no custo final para as fábricas e para o consumidor, sem dúvidas.

O gosto do público consumidor está mais apurado. Exige motores superalimentados, híbridos ou mesmo 100% elétricos, além de carrocerias maiores e mais confortáveis, onde os SUVs surfam na onda por poderem oferecer tudo isso junto.

 

No final das contas, a inclusão de tantos recursos pesará mais na planilha de custos dos modelos de entrada, e, mesmo que ainda existam os veículos mais simplórios, poucos irão querer um “pé-de-boi”, vê-se os números de vendas dos atuais representantes deste famigerado segmento como Renault Kwid, Fiat Mobi e Citroën C3, sendo assim, está cada vez mais decretado o fim da era do carro popular.

Este texto contém análises e opiniões pessoais do colunista e não reflete, necessariamente, a opinião da Mobiauto.

Leonardo França é formado em gestão de pessoas, tem pós-graduação em comunicação e MKT e vive o jornalismo desde a adolescência.  Atua como BPO, e há 20 anos, ajuda pessoas a comprar carros em ótimo estado e de maneira racional. Tem por missão levar a informação de forma simples e didática. É criador do canal Autos Originais e colaborador em outras mídias de comunicação.

https://www.instagram.com/autosoriginais

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