Em poucos anos, Brasil perdeu (ou quase) mais de 10 fábricas de carro
“A esperança dança na corda bamba de sombrinha”. Claro que os versos da canção O Bêbado e a Equilibrista, de Aldir Blanc e João Bosco, eternizada na voz de Elis Regina, nada tem a ver com automóveis. Mas bem se encaixa na atual situação de nossa indústria automobilística.
Alguns anúncios trazem, de fato, esperança. Volkswagen, Stellantis e GWM divulgando projetos de eletrificação... A Renault descongelou o desenvolvimento do SUV HJF e de um motor 1.0 turbo que será nacionalizado e flex. A Nissan, mais recentemente, recebeu um aporte de R$ 1,1 bilhão para modernzar o complexo de Resende (RJ)...
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Nenhuma dessas movimentações, porém, parece tatear um mundo que, em menos de 20 anos, talvez 15, deve se livrar de vez dos motores a combustão. Nesse sentido, talvez só a própria VW e a Nissan estejam pensando mais adiante, com seus possíveis veículos elétricos movidos a célula de combustível com etanol.
Ao mesmo tempo, nossa indústria passa por um lento e agoniante processo de desmonte. Você pode não ter percebido, mas num período de sete anos nosso país perdeu ou esteve muito perto de perder nada menos que 14 fábricas automotivas, média duas por ano. Colocarei a lista completa mais adiante.
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Do otimismo ao choque de realidade
Audi A3 Senna, a unidade nº 1 do modelo feita no Brasil, com pintura e sobrenome especiais: tempos eram de otimismo
Em 2012, o país ainda vivia os louros de um fim de década resplandecente, talvez a melhor fase de nossa curta história republicana. Tanto que, naquele ano, chegamos a um pico de 3,8 milhões de veículos leves comercializados no país.
Enquanto Estados Unidos e Europa ainda se refaziam da fortíssima crise econômica iniciada anos antes, o clima por aqui era de otimismo. O país do futuro parecia enfim pronto para se tornar o país do presente. O governo queria fortalecer ainda mais a indústria nacional e, com ar de festa, criou o polêmico programa Inovar-Auto.
Através dele, novas montadoras foram convidadas a se juntar à lista daquelas que aqui já tínhamos instaladas. Quem aceitasse ganharia subsídios e regalias tributárias. Quem se recusasse entraria em um duro sistema de cotas de importação que, se extrapolado, renderia a cobrança de uma singela sobretaxa de 30 pontos percentuais de IPI.
O regime atraiu desde marcas generalistas, marcas de luxo, caso da japonesa Nissan e das chinesas JAC Motors e Chery, até as de luxo, como Audi, BMW, Jaguar Land Rover e Mercedes-Benz. Só que a coisa A coisa começou a degringolar em 2015, justamente no momento em que essas marcas todas colocavam suas fábricas novinhas em folha para funcionar.
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Nossa economia perdeu o fôlego de outrora e o mercado despencou de volta para a faixa de 2 milhões de veículos vendidos ao ano, justamente no momento em que a capacidade produtiva havia sido incrementada para 5 milhões/ano, mais que o dobro.
A coisa piorou ainda mais de 2020 para cá. A pandemia de covid-19, aliada a uma política econômica desastrosa, que levou à disparada dos preços e o acelerado empobrecimento das classes médias e mais baixas da população brasileira, tornaram difícil até mesmo manter os tais 2 milhões anuais.
Muito se fala em suprir a capacidade ociosa com exportações, mas não sejamos ingênuos. Por mais que nossa carga tributária seja pesada (e é), o Brasil tem outro fator negativo indissolúvel e pouco comentado: sua localização geográfica. Não estamos na Europa nem ao lado dos Estados Unidos. Tampouco somos a China, com sua população de 1,4 bilhão de habitantes, quase sete vezes a nossa, o que permite regimes de larguíssima escala.
Dependemos, portanto, da pujança de nosso mercado interno e de uma América do Sul que parece cada vez mais perdida – econômica e politicamente – para nos recuperarmos. E enquanto o mundo acelera a marcha dos investimentos em carros elétricos e autônomos, o Brasil vai ficando para trás e sem muitas perspectivas.
Resultado? Multinacionais desistindo de investir na produção local – afinal, se só uma mesma parcela mais abastada da população terá poder de compra, não é mais fácil produzir em grande escala n’outro lugar e trazer para cá modelos importados? – e fábricas fechando.
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Sangria lenta
Ruínas da fábrica desativada pela Ford em São Bernardo do Campo (SP): local hoje está reformado e se tornou um centro logístico
O processo ainda é lento, mas segue constante. O caso mais emblemático é o da Ford, que abandonou uma tradição centenária para desativar quatro complexos no período de dois anos: São Bernardo do Campo (SP), Camaçari (BA), a planta de motores em Taubaté (SP) e a da Troller em Horizonte (CE).
A Mercedes-Benz encerrou as atividades em Iracemápolis (SP) e quase fez o mesmo em Juiz de Fora (MG). Por sorte, a unidade do interior paulista foi adquirida pela GWM e voltará a operar em 2023. A mineira segue vive, mas na tal corda bamba, montando apenas carrocerias enquanto a produção efetiva de caminhões e ônibus foi centralizada em São Bernardo.
A Audi, que chegou a criar configurações do modelo A3 Sedan dedicadas ao nosso mercado, interrompeu tudo em São José dos Pinhais (PR). Neste ano, voltará a montar de maneira muito tímida os SUVs Q3 e Q3 Sportback, num formato SKD e em uma operação que mais parece voltada apenas a garantir créditos fiscais reivindicados desde a época do Inovar-Auto.
A Jaguar Land Rover teve de sublocar seu espaço em Itatiaia (RJ) para um laboratório de emissões para homologação de veículos, a fim de viabilizar o investimento. E não terá problemas em fazer o mesmo com outras partes do complexo, se necessário.
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Ao mesmo tempo, a JAC simplesmente desistiu de construir uma fábrica em Camaçari (BA). A conterrânea Chery só não seguiu o mesmo caminho porque a Caoa assumiu a operação em Jacareí (SP) na última hora. Ainda assim, esta opera ainda muito abaixo da capacidade inicialmente planejada.
Mesmo aquelas fabricantes que parecem em situação mais estável enxugaram as operações em tempos recentes. É o caso da Honda, que há alguns anos tinha planos de operar no país com duas fábricas a pleno vapor – Itirapina e Sumaré, ambas no interior de SP –, mas decidiu deixar ativa só a primeira.
Sumaré segue como sede administrativa, produzindo peças de reposição e com um Centro de Pesquisa & Desenvolvimento. Um caminho bem parecido com o da fábrica de São Bernardo do Campo (SP), que passou 20 anos operando apenas dessa forma e terá suas atividades encerradas pela Toyota até o fim de 2023.
Uma planta que tinha seis décadas de muita história para contar. Mas, em um mundo cada vez mais competitivo, tradição e história sozinhas não pagam as contas... Infelizmente. E, assim, o complexo do ABC paulista se tornou o 14º a ser ou passar muito perto de ser descontinuado no Brasil nos últimos sete anos. Vejamos a lista completa:
1) Audi São José dos Pinhais (SP): produção encerrada em 2019 e reaberta em 2022 com estrutura reduzida a montagens em CKD e SKD
2) Chery Jacareí (SP): adquirida pela Caoa em 2017, às vésperas de ser fechada. Operando com estrutura reduzida
3) Ford São Bernardo do Campo (SP): desativada em 2019
4) Ford Camaçari (BA): desativada em 2021
5) Ford Taubaté (SP): desativada em 2021
6) Ford-Troller Horizonte (CE): desativada em 2021
7) Honda Sumaré (SP): estrutura reduzida em 2021 para produção de peças de reposição
8) HPE Itumbiara (GO): desativada em 2015
9) JAC Camaçari (BA): cancelada antes mesmo de ser construída, em 2015
10) Jaguar Land Rover Itatiaia (RJ): produção reduzida e parte da parte da área sublocada
11) Mercedes-Benz Iracemápolis (SP): chegou a ser desativada, mas será reaberta pela GWM
12) Mercedes-Benz Juiz de Fora (MG): estrutura reduzida à produção de carrocerias
13) Stellantis Campo Largo (PR): produz motores E.torQ para exportação, sem perspectiva de novos investimentos
13) Toyota São Bernardo do Campo (SP): será desativada até o fim de 2023
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Futuro de incertezas
Nisso, a tal capacidade produtiva de 5 milhões de veículos anuais já caiu para 4,5 milhões, um recuo de 10% em poucos anos. E poucas, poucas mesmo, são as fábricas que não vivem um clima de incerteza quanto ao futuro de médio e longo prazo.
Não estamos dizendo que toda a indústria automobilística nacional vai morrer. Porém, o Brasil precisa urgentemente restabelecer uma política de desenvolvimento industrial e de recuperação do poder de compra da população para evitar uma retração ainda maior.
Caso contrário, nossa indústria de automóveis seguirá na corda bamba e, daqui a pouco, nem mais a sombrinha restará para evitar novas quedas.
Este texto contém análises e opiniões pessoais do colunista e não reflete, necessariamente, a opinião da Mobiauto.
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Jornalista Automotivo