Ford Del Rey: como um sedan criticado virou símbolo de carro raiz
Por Antonio Frauches
Existem vários exemplos no mercado automotivo de bons carros que nunca atingem seu potencial nas vendas, por alguma estratégia incorreta ou por outros percalços causados pela montadora. No Brasil, o mais emblemático desses exemplos possivelmente é o Fiat Marea.
Mas e carros não tão bons assim, com desenvolvimento tortuoso e decisões truncadas, que acabam virando lendas? Bom, esses exemplos são bem mais raros. E talvez o mais emblemático deles seja o Ford Del Rey.
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Desde o meio da década passada, o Del Rey se tornou o principal símbolo do carro raiz, fama embalada pelos memes utilizando o modelo, fazendo referência às sextas-feiras, farras em botecos, ou ambientes, digamos, mais promíscuos, regradas à cachaça e maços de cigarro.
Não cabe discutir por que o Del Rey foi escolhido para o meme, dentre tantos bons carros que tivemos nos anos 1980. Mas podemos analisar se o Del Rey é realmente um carro dito raiz, e sua posição no mercado da época.
A história do Ford Del Rey
Para contar a história do Del Rey precisamos voltar a 1968, 13 anos antes do lançamento do carro. Na ocasião, a Willys Overland do Brasil firmou uma parceria com a Renault, que originou o Willys Gordini, oriundo do Renault Dauphine, e o Interlagos, primo latino-americano do Alpine A108.
O sucesso do Fusca no Brasil inspirou a Willys a investir no mercado de compactos, e a empresa decidiu desenvolver um novo carro para substituir o Gordini. Através da parceria com a francesa, a Willys conheceu o projeto do Renault 12, e passou a desenvolver em paralelo com o modelo europeu o seu novo Willys nacional, batizado de Projeto M.
Renault 12: o irmão francês do nosso Corcel I
O planejamento era lançar o novo Willys no Salão do Automóvel de São Paulo de 1968. Porém, no início daquele ano, a Willys Overland do Brasil foi adquirida pela Ford. O projeto M foi realmente lançado no Salão de 1968, porém, rebatizado de Ford Corcel.
Curiosamente, o Renault R12 foi lançado somente em 1969, tornando o Corcel uma “cópia” lançada antes de sua versão original. Avançando dez anos no tempo, chegamos ao final da década de 1970. A Ford tinha três sedans em seu portifólio nacional: Corcel, Maverick e Landau.
O Corcel tinha relativo sucesso, principalmente na versão duas portas. Maverick e Landau, entretanto, sofriam a restrição nas vendas normalmente impostas a carros mais caros, e ainda demandavam motores maiores e mais beberrões. Enfim, dinossauros destinados a entrar em extinção com a crise do petróleo. A Ford então começou a trabalhar no seu novo sedan de luxo.
Ford Escort Mk2: porte parecido com o Corcel, com tração traseira
À época, a Ford europeia também possuía três sedans: o Escort Mk3, o Taunus e o Granada. A montadora poderia ter nacionalizado algum de seus produtos europeus, sem dúvida.
Tudo bem, o Escort Mk2 não seria uma boa ideia, uma vez que tinha porte parecido com o Corcel e acabaria canibalizando o meio-irmão. Além disso, estava com os dias contados e seria substituído pelo Escort Mk43, nosso primeiro Escort, que só teria sua versão sedan, chamada Orion, lançada em 1983.
Ford Granada: maior sedan da Ford na Europa
O Ford Granada Mk2 era um carro moderno para a época, pois foi lançado em 1977. Entretanto, era um sedan grande. Menor do que um Landau, mas ainda grande para nossos padrões. Teria a árdua tarefa de brigar com Chevrolet Opala, estabelecido no mercado. Tudo isso trazendo para o Brasil motores inéditos...
Por último: seu nome era Granada. A criatividade brasileira rapidamente apelidaria o carro de Ford Dinamite, ou Ford Bomba... Enfim, o cenário não era promissor.
Ford Taunus TC, lançado em 1970
Por fim, nos restava o Taunus, que foi a escolha da Ford para diversos mercados latino-americanos, incluindo a Argentina. Se nacionalizado, seria posicionado com sucesso entre o Corcel e o Landau. A Ford poderia trazer o Ford Taunus TC, lançado e 1970, ou sua evolução, TC2, lançada em 1976.
O Taunus tinha tração traseira e uma grande gama de opções de motorização, indo do OHV de quatro cilindros em linha aos Cologne V6, passando por uma estranha família de motores V4. Tais predicados poderiam facilmente transformar o Taunus no “Opala da Ford”, o que poderia ter mudado completamente as décadas seguintes para a marca no Brasil.
Ford Taunus TC2, lançado em 1976
Em vez de nacionalizar um dos seus, a Ford do Brasil decidiu inventar. Então, para substituir de uma vez só Maverick e Landau, nasceu o Del Rey. Para o desenvolvimento do novo Ford, a montadora decidiu aproveitar o que tinha à mão no Brasil, ou seja: o Corcel II.
Deste modo, a Ford tomou como base o Corcel, bebendo da fonte visual do Taunus TC2, e praticamente mergulhando na fonte do Granada Mk2. O Del Rey, produto dessa sopa, acabou se tornando praticamente um “Granada em escala reduzida”.
Traseira do Ford Granada Mk2: praticamente um Del Rey grande
Lançado em 1981, um ano depois do lançamento do revolucionário Escort Mk3 europeu, o Del Rey trazia duas versões, Prata e Ouro, podendo ter duas ou quatro portas. Ainda tinha como irmãos a perua Scala e a picape Pampa.
Mesmo nas versões mais básicas, o Del Rey tinha acabamento invejável. O console no teto com o relógio digital caiu no gosto do mercado, sendo imitado por modelos topo de linha até os anos 1990.
Primeiro Del Rey tinha grade filetada verticalmente
Entretanto, o sedan foi duramente criticado pelo espaço no banco traseiro, mesmo na configuração de quatro portas, e pelo porta-malas pífio, com 343 litros. Além disso, como dissemos por aqui no texto sobre a história do Ford Escort: a Ford não poderia deixar de dar uma de... Ford. Aproveitou o já fraco 1.6 CHT do Corcel, com 69 cv.
Tratando-se de um carro de luxo, não poderia faltar uma versão com câmbio automático. E na ausência de transmissões automáticas em sua gama, a Ford foi buscar uma na Renault. A caixa automática de três marchas francesa era a única que montava no motor do Del Rey.
Mesmo com câmbio manual de cinco marchas, moderno para a época, o desempenho do carro era sofrível, chegando a 139 km/h de velocidade final e indo de 0 a 100 km/h em 21,6 segundos. Tudo isso rendeu ao Del Rey, à época, o apelido de Corsário: Corcel de otário.
Acabamento era excelente para os padrões da época
O Del Rey pouco mudou durante sua vida, ganhando um leve facelift em 1985 e versões mais básicas em 1986, para substituir o aposentado Corcel II. Em 1989, finalmente recebeu, com extrema demora, um motor a altura de seu requinte: o VW AP 1.8, oriundo da Autolatina.
Porém, o AP apenas deu ao Del Rey uma breve sobrevida de dois anos. Em 1991, o último Del Rey saiu da fábrica para entrar para a história.
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Ford Del Rey pós facelift: marca ressaltava o requinte do acabamento interno
Do ostracismo à fama de carro raiz
E lá estava ele, deitado em berço esplêndido. Pouco se falava sobre o irmão maior do Corcel II, poucos eram vistos pela rua. Ele era, sim, admirado pelo seu acabamento e luxo, mas sempre lembrado pelo pífio 1.6.
Até que, um belo dia, do nada, surgiu uma expressão: “Sexta-feira, 18h, Del Rey ligado, copo de cerveja na mão, maço de cigarro no bolso... #PAZ”. Assim, mais de 20 anos após a sua aposentadoria, o Del Rey era retirado das gavetas da história e alçado ao posto de viral, tornando-se símbolo de carro raiz, daqueles que não se fabricam mais.
Cá para nós: ele tem suas qualidades. Mas se eu fosse eleger o carro mais raiz dos anos 1980, não consideraria sedans com motor quatro cilindros de menos de 70 cv, com tração dianteira e três parafusos por roda. Esse posto deveria ser, no mínimo, do Chevrolet Opala, que era carro de polícia, de bandido, de político, táxi, ambulância, camburão funerário...
Mas quis o destino, e o autor do meme, que o carro que lhe viesse à cabeça fosse o Del Rey. Talvez por alguma memória afetiva de infância, não sei ao certo. Mas acho que a fama foi bem-vinda ao Del Rey, para lhe curar os males causados pela própria Ford, que resolveu desenvolver um Frankenstein com base em um Frankestein (Corcel II).
Memes com o Del Rey tornaram-se comuns
A mesma incerteza sobre a origem do meme tenho sobre o que teria se tornado a Ford do Brasil se, em vez de desenvolver o Del Rey, tivesse trazido o Taunus. Será que existiria Autolatina e seus monstrinhos? Será que a Ford teria deixado de fabricar carros no Brasil na década de 2020? Fica o exercício de imaginação.
Durante um breve momento eu tive contato com um Del Rey. Tratava-se de um Ghia com motor AP, provavelmente 1989 ou 1990. Isso ocorreu lá por 1992 ou 1993, quando meu pai vendeu seu Corcel II 1981. Durante alguns meses ele ficou com o Del Rey de um amigo.
Eu me lembro que o carro era de extremo bom gosto, nada comparado aos carros que eu conhecia na época. Em tempos nos quais cadeirinhas, bebês conforto e assentos de elevação eram inexistentes, eu adorava viajar sentado sobre o descanso de braços que ficava embutido no banco traseiro.
Com essa bela memória afetiva eu não tenho dúvidas: se fosse comprar hoje um sedã dos anos 1980, com requinte e luxo, eu certamente compraria um... Monza! Talvez um Santana... O meme é legal, mas eu prefiro a realidade.
Este texto contém análises e opiniões pessoais do colunista e não reflete, necessariamente, a opinião da Mobiauto.
Antonio Frauches, engenheiro mecânico e entusiasta do mundo automotivo.
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Jornalista Automotivo