Motor CHT: como a Ford fez história no Brasil com velho projeto da Renault

Primeiros esboços na usina eram franceses e projeto caiu no colo da marca americana, que soube aproveitar a oportunidade
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11.05.2023 às 12:36 • Atualizado em 12.11.2024
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Primeiros esboços na usina eram franceses e projeto caiu no colo da marca americana, que soube aproveitar a oportunidade

Sabe aquele jogador que nunca ganhou uma copa do mundo, nem qualquer prêmio individual? Beliscou alguns campeonatos regionais e nacionais, chegou à seleção, mas que nunca foi tido como craque ou referência e manteve boa constância durante toda a carreira.

Não foi artilheiro, mas também não levou muitos cartões. Não era o mais rápido ou forte, mas nunca sofreu contusões sérias. Agora vamos transformar esse jogador em um motor. Pronto, eis o CHT.

O CHT, abreviação de Compound High Turbulance, foi desenvolvido pela Ford do Brasil no início dos anos 80, para equipar toda a linha brasileira. Até o início da Autolatina, o CHT era praticamente o único motor Ford disponível no Brasil para os carros de passeio. 

No final dos anos 80 e até o meio da década de 90 seguiu em linha, equipando as versões menos potentes da Ford e da Volkswagen, incluindo os clássicos Ford Escort Hobby e o Vw Gol 1000. 

Mas, apesar de ter “nascido” nos anos 80, as raízes do CHT são bem mais antigas.

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Como surgiu o CHT

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Figura 1 - O motor Billancourt equipando um Renault 4CV

Durante a 2ª Guerra Mundial, Louis Renault trabalhava em um novo carro compacto, que seria o Renault 4 CV. Para equipar o modelo, seria desenvolvido um novo e moderno motor, cujo projeto foi capitaneado por Fernand Picard. E deste projeto nasceu, em 1947, o motor Renault Billancourt. 

O novo Billancourt surgiu como um quatro-cilindros em linha, 0,8 litros, com bloco em ferro fundido e cabeçote em alumínio. O eixo do comando de válvulas ficava no bloco, ao lado dos cilindros, com sincronismo por engrenagens. As válvulas ficavam no cabeçote (OHV), com acionamento por varetas. 

A potência era de incríveis 17 hp, o que já era bastante para a época, pensando que uma das evoluções mais potentes do Billancourt, conhecidas como Ventoux, chegou ao Brasil equipando o Willys Gordini, que usava o motor na versão 845 cm³ de 40 cv.

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Figura 2 - O motor Ventoux no Willys Gordini: uma evolução do Billancourt

No início dos anos 1960 a Renault trabalhava no desenvolvimento de um outro novo motor. O Billancourt-Ventoux ainda era moderno, porém já havia atingido seu limite de cilindrada, com 1,0 litro. O novo motor possuía o mesmo desenho do Billancourt-Ventox, porém não herdava nenhum de seus componentes. 

Assim nasceu o motor Renault Sierra, depois rebatizado para Renault Cléon-Fonte, que trazia como evoluções do Billancourt-Ventoux, além do ganho de cilindrada, o virabrequim com cinco mancais, contra três de seu antecessor, e o eixo de comando ainda no bloco, porém sincronizado por corrente.

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Figura 3 - O motor Cléon-Fonte

O Cléon-Fonte nasceu como 1.0 litro, em 1962, e continuou a venda por incríveis quarenta e dois anos, equipando diversos veículos da Renault, Ford, René Bonnet e Volvo. Sua maior cilindrada foi 1.6 litro (1578 cm³), de 68 hp. O Cléon-Fonte deu adeus para o mundo em 2004, quando o último Dacia 1300, um Renault 12 com outro nome, saiu da linha de produção. 

Como curiosidade, vale dizer que o Cléon-Fonte teve versões 16 válvulas com duplo eixo de comando no cabeçote (DOHC) e turbo. Ambas, infelizmente, nunca chegaram ao Brasil.

Motor Renault equipando os Ford

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Figura 4 - O lendário Renault 5 turbo usava um Cléon Fonte 1.4

Como dissemos na coluna sobre a história do Del Rey, na década de 1960 a Willys Overland do Brasil tinha uma parceria com a Renault, vendendo aqui Gordini e Interlagos, ambos modelos Renault equipados com o Billancourt-Ventoux, e trabalhava em seu novo modelo, que seria lançado em 1968 e carregaria o Cléon-Fonte. 

Com a aquisição da Willys pela Ford, o projeto baseado no Renault 12 e equipado com o Cléon-Fonte caiu no colo dos americanos, e foi lançado com o nome de Ford Corcel, com um Cléon-Fonte 1.3 de 68 cv. Já em 1971, o motor teve a cilindrada aumentada para 1.4, indo a 75 cv.

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Figura 5 - Cléon Fonte equipando um Ford Corcel

Em 1979, já equipando o Corcel II, o Cléon-Fonte foi retrabalhado pela engenharia da Ford do Brasil, avançando a 1555 cm³, em uma configuração que não existiu na Europa, uma vez que o 1.6 europeu é ligeiramente maior. O Corcel II com o Cléon-Fonte inaugurou a denominação de cilindrada em litros, separando a casa decimal com ponto. Foi o início do fim da denominação em cm³, como nos VW 1300 e 1600, ou nos Chevrolet 4100.

Com a chegada da década de 1980 a Ford tinha seu novo produto global: o Ford Escort Mk3. Um carro moderno, que invariavelmente chegaria por aqui. Deu-se início então ao processo para decidir qual motor equiparia o moderno Escort no Brasil. 

Uma alternativa seria nacionalizar o conjunto completo europeu, incluindo os motores CVH (Compound Valve Angle Hemispherical Combustion Chamber). Outra alternativa seria deixar a engenharia brasileira trabalhar com o que tinha em mãos. Em outras palavras: desenvolver ainda mais o Cléon-Fonte.

A segunda opção foi a vencedora, e a fabricante iniciou a gestação do CHT.

O nascimento do CHT do Escort

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Figura 6 - CHT: a evolução do Cléon Fonte desenvolvida pela Ford do Brasil

Aqui, cabem parênteses. Os motores CVH eram bem modernos para a época, com câmara de combustão hemisférica, eixo de comando no cabeçote e sincronismo por correia dentada. Cobriam uma grande faixa de cilindradas, indo de 1,1 a 2,0 litros. A potência partia de 69 cv, número aceitável para a época. 

E para fechar: o CVH evoluiu para o excelente Zetec... Enfim, nos resta imaginar o que teria sido da Ford nos anos 1980 e 1990 se o CVH tivesse sido o escolhido.

Voltando a falar do CHT, ele foi equipado com um novo cabeçote, com câmaras de combustão favorecendo a turbulência, visando queima mais eficiente da mistura, além de outras melhorias. 

O “novo” motor Ford foi lançado em versões 1.3, rendendo 58 cv na gasolina e 63 no etanol, e 1.6, rendendo 66 cv na gasolina e 73 cv no etanol, sendo todos números de potência líquida. Já o Escort XR3 recebeu a versão mais apimentada do CHT: 1.6 XR, também conhecido como Fórmula, rendendo 83 cv no etanol.

Anos depois de seu lançamento o CHT foi modernizado, tendo os números do 1.6 melhorados para 74 cv (gasolina) e 86 cv (etanol). Com a criação da Autolatina, em 1987, o CHT passou a ser o motor de entrada dos modelos da Joint Venture, recebendo o nome de AE nos Volkswagen, e ao VW AP coube a missão de ser o mais potente. 

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CHT deu origem ao Gol 1000

Em 1992, o CHT teve uma versão reduzida, 1.0 de 50 cv, que equipou o Ford Escort Hobby e o VW Gol 1000. A última evolução do CHT foi no VW Gol 1000i: o primeiro Gol Bola. Sim, a VW vendeu o Gol G2, ou o simpático Bola, equipado com o CHT com injeção eletrônica monoponto, rendendo 50 cv.

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Figura 7 - Motor AE: denominação dada pela VW ao CHT

Em 1996 a Autolatina chegou ao fim, e levou consigo o CHT. A Volkswagen substituiu o CHT com o moderno EA111, já a Ford decidiu trazer, tardiamente, seus próprios motores sendo, na faixa de cilindrada do CHT, o Endura-E 1.0 e 1.3, e o Zetec 1.6.

O grande fã clube do CHT enaltece, além da manutenção simples e da robustez, o torque em baixa RPM. Realmente, quando comparado com o AP 1.6, o CHT 1.6 consegue números melhores de torque na faixa de rotação que mais se utiliza no trânsito. 

O fato é que o CHT foi um belo trabalho feito pela Ford, em um motor cujas raízes do projeto já tinham quarenta anos. Numa comparação, é como se alguma montadora trabalhasse em uma evolução do Chevrolet Família 1 1.8, e conseguisse tirar 125 cv do motor. É uma boa potência, para um Família 1. Mas o E-Torq 1.8 já superava esse número no início da década passada.

CHT foi um bom motor

Acredito que o Cléon Fonte e o CHT foram excelentes motores para seu tempo. Incluo nesse tempo a primeira metade dos anos 1990, quando ainda tínhamos carburadores por aqui. Mas o fim da Autolatina e a modernização abrupta causada pela abertura das importações deixou a Ford carente de motores. 

Em um exercício injusto de criação de teorias, se a Ford tivesse trazido o CVH para o Brasil no início dos anos 1980, essa carência não existiria. A exemplo do que ocorreu com a Chevrolet, a montadora de Henry Ford teria um motor mais fraco para os modelos de entrada (CHT) e um mais forte e moderno para os demais (CVH). Com isso, talvez a chegada do Zetec no Escort Mk6 teria sido mais bem recebida.

Enfim, nos resta apreciar a história. Vamos deixar as análises de universos paralelos para os filmes de super-heróis.

Antonio Frauches, engenheiro mecânico e entusiasta do mundo automotivo.

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