Ford Ka: o carro que era do mundo, mas ganhou naturalidade brasileira

Subcompacto nasceu como um city car tipicamente europeu, mas aos poucos foi sendo apropriado e moldado ao gosto dos brasileiros
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15.09.2022 às 23:00 • Atualizado em 12.11.2024
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Subcompacto nasceu como um city car tipicamente europeu, mas aos poucos foi sendo apropriado e moldado ao gosto dos brasileiros

O mercado brasileiro possui características bem peculiares. É imenso, mas há poucas opções. Temos matéria-prima e mão de obra, mas montamos mais do que fabricamos propriamente um automóvel. E na grande maioria das vezes recebemos produtos que já têm alguns anos de vida na Europa ou nos Estados Unidos. 

Além disso, quase nunca um carro desenvolvido aqui vai para mercados mais maduros e exigentes. De pronto, me vêm à mente só três modelos com raízes brasileiras que adentraram o velho mundo: VW Fox, que foi desenvolvido pela VW do Brasil; Ford EcoSport, nascido aqui e tornado global em sua segunda geração; e o Ford Ka.

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Ka? Sim, o Ka. Mas não se desespere: fique conosco até o final do texto que você vai entender. O Ka surgiu da necessidade da Ford de ter um modelo para brigar no nicho dos city cars na Europa. 

Lá, city cars é como são chamados carros pequenos e práticos, para solteiros ou famílias que precisam de um segundo carro. Exemplos? Kia Picanto, VW Up, Fiat Mobi e Renault Kwid. Esses dois últimos não são vendidos por lá, mas você entendeu… Por aqui, chamamos de sub compactos.

Subcompacto nasceu como um city car tipicamente europeu, mas aos poucos foi sendo apropriado e moldado ao gosto dos brasileiros

Figura 1 - Protótipo do Ka apresentado no salão de Genebra: bem menos simpático...

O conceito do Ford Ka foi apresentado no Salão de Genebra de 1994, com um design bem mais polêmico do que carismático. O lançamento oficial do modelo aconteceu no salão de Paris, em 1996. 

Do conceito restaram apenas as linhas arredondadas e a identidade das laterais. Porém, o design com vincos e arestas bem colocados e o conjunto óptico com mais identidade deram ao Ka um ar de “carro que todo mundo gosta”.

Subcompacto nasceu como um city car tipicamente europeu, mas aos poucos foi sendo apropriado e moldado ao gosto dos brasileiros

Figura 2 – O Ka definitivo: pronto para brigar com Twingo e Corsa.

Mas, como não podia ser diferente, a Ford aprontou uma das suas… Desenvolveu um carro com design futurista, visando o público jovem, mas usou como base o Fiesta Mk3, que por aqui chamamos de “Argentino”, lançado na Europa em 1989, e o equipou com um motor que tem raízes na década de 1950: o famoso Endura E! 

O motor era a última evolução do antigo Ford Kent, lançado em 1959 para equipar o Ford Anglia. Este você deve conhecer como o carro voador do filme “Harry Potter e a Câmara Secreta”. 

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Do Ford Kent, o Endura ainda herdava o comando de válvulas no bloco, com transmissão por corrente e acionamento dos tuchos por varetas. Eram oferecidos dois tipos de Endura E: o 1.0, que rendia 53 cv e 7,8 kgfm, e o 1.3, de 63 cv e 10,6 kgfm.

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Figura 3 - O Anglia foi o primeiro Ford a usar o motor Kent de 1959, do qual o Endura E do Ka é originado

Em 2000, o Ka brasileiro recebeu uma pequena injeção de fôlego, com a saída do Endura E e a chegada do Zetec Rocam 1.0, de 65 cv e 8,9 kgfm. Não era muito, mas era o suficiente para dar outra vida ao mini Ford. 

O desempenho que faltava chegou com o Ka XR, em 2001. O “esportivo” era equipado com o excelente Zetec Rocam 1.6 de 95 cv e 14,5 kgfm. 

Durante os anos que essas opções perduraram, o Ka ocupou os dois extremos da lista de carros mais rápidos do país: o 1.0 era um dos mais lentos, junto com o irmão Fiesta, e o XR era um dos mais rápidos, chegando a estar relativamente próximo de Golf GTI e Civic SI.

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Figura 4 - A versão esportiva XR e a traseira atualizada, exclusiva do Brasil

Em 2002 o Ka ganhou um facelift brasileiro, que não chegou a nenhum outro mercado. Novas versões mantiveram o fôlego até o final da década. Na Europa, a primeira geração manteve-se intocada até 2008. Nesse período, ganhou uma versão esportiva, SportKa, e conversível, StreetKa. Ambas equipadas com o Zetec Rocam 1.6, que na Europa já era chamado de Duratec.

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Figura 5 - A versão conversível StreetKa, que infelizmente não veio para o Brasil

Em 2008 ocorreu a cisão dos Kas. Na Europa, foi lançada a segunda geração, chamada de B420. O Ka B420 era um city car como seu antecessor, e foi desenvolvido em conjunto com a Fiat, usando a mesma plataforma do Fiat 500, Fiat Panda e Lancia Ypsilon. Tinha duas opções de motor: o 1.2 Duratec a gasolina, de 69 cv e 10,4 kgfm, a gasolina, e o 1.3 Duratorq a diesel, de 75 cv e 14,8 kgfm. 

Mas não se engane: esse Duratec era na verdade um Fire, e o Duratorq era na verdade um Multijet. Ambos fabricados pela Fiat. Sim, meus amigos: existiu um Ford Ka com motor Fire… Será que aqui no Brasil teria mais êxito que o Rocam 1.0?

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Figura 6 - Ka Mk2 europeu é irmão do Fiat 500 e usa motores Fiat

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Já nas terras brasileiras, 2008 trouxe nossa segunda geração do Ka. Chamada de B402, sem ter nada a ver com a Fiat, foi desenvolvida pela Ford do Brasil tendo como base o Fiesta Mk5, terceira geração do Fiesta no Brasil. 

Trazia motores atualizados, agora flex, com números ligeiramente superiores. O Zetec Rocam 1.0 passou a oferecer 73 cv e 9,3 kgfm consumindo etanol, e o 1.6 passou para 107 cv e 15,3 kgfm, também com etanol. 

A maior mudança, porém, passou despercebida pela maioria dos consumidores: nossa segunda geração do Ka tinha capacidade para cinco passageiros, enquanto a primeira geração e a segunda geração europeia carregavam somente quatro pessoas.

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Figura 7 - Ford Ka Mk2 brasileiro: um Fiesta Mk5 com duas portas

A terceira geração traz o incomum que descrevi no início do texto: em 2013, foi apresentada a partir do projeto B562. Desenvolvido pela Ford do Brasil em parceria com a Índia, seu objetivo era ser um produto global, para ser ofertado na América Latina, África, Ásia e Europa. 

Lançado aqui em 2014, nas versões hatch (Ka) e sedã (Ka+, posteriormente renomeado para Ka Sedan), sempre com quatro portas, podia ser equipado com os motores 1.0 Ti-VCT de 85 cv e 10,7 Nm com etanol, ou 1.5 Sigma de 110 cv e 14,9 kgfm com etanol.

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Figura 8 - Ford Ka Mk3: o Ka brasileiro que ganhou o mundo

Logo em seguida o Ka foi levado para a Índia, onde foi rebatizado de Ford Figo (hatch) e Figo Aspire (sedã). O mesmo nome foi usado na África do Sul. Nosso Ka chegou ao velho continente em 2015, onde era oferecido somente na versão hatch, rebatizada de Ka+. 

Pelo mundo, teve uma série de opções de motorização, incluindo 1.2 Dragon de três cilindros, 1.2 Ti-VCT de quatro cilindros e 1.5 Duratorq turbo diesel de quatro cilindros. Em alguns mercados também foram oferecidas versões com câmbio automatizado Powershift.

Descontinuado na Europa em 2016, nosso Ka teve alguma sobrevida no Brasil graças a facelifts, normalmente desastrosos, e novos equipamentos. Na parte mecânica, a maior mudança foi a saída do 1.5 sigma em 2018, sendo substituído pelo 1.5 Dragon de três cilindros, desenvolvendo 136 cv com etanol. 

A partir de 2018, também foi oferecido o câmbio automático de seis marchas, o mesmo que passou a equipar o Ecosport.

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Figura 9 - Interior da última versão do Ka, com câmbio automático

Em 2021, com a decisão da Ford de não mais fabricar carros no Brasil, a vida do Ka teve fim. Ele não figura nem entre os dez carros mais vendidos da história do Brasil, mas sempre foi referência de equilíbrio entre baixo custo e conforto. 

Sua dirigibilidade é reconhecida e elogiada entre os entusiastas, que hoje usam o Ka como base para projetos, mirando principalmente nos trackdays. Tive oportunidade de dirigir praticamente todas as versões do Ka ofertadas no Brasil. 

Meu primeiro contato com o Ford Ka foi em um modelo 1999 equipado com o sofrível Endura E 1.0. O carro já tinha alguns anos de idade, e sua manutenção, provavelmente, foi um pouco negligenciada durante sua vida. 

Para os mais altos, o interior do Ka pode ser um pouco claustrofóbico, mas nada muito diferente do vivenciado no Chevrolet Celta. Realmente o Endura era insuficiente para o carro, mesmo considerando que a unidade não estava em seus melhores dias, o motor não tinha o fôlego esperado.

Não apresentava falhas ou perda de potência características de componentes desgastados, mas simplesmente não conseguia levar o Ka a velocidades acima de 100 km/h em quinta marcha.

Essa unidade em questão apresentou diversos problemas no sistema de arrefecimento, como: vazamentos, incrustações, superaquecimento etc. Mas o excelente acerto de suspensão do Ka ainda estava lá. O carro era capaz de contornar curvas melhor do que qualquer concorrente de sua época.

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Tive oportunidade de dirigir também a segunda geração nacional, tanto com motor 1.0 quanto 1.6. O 1.0 Zetec Rocam era muito melhor que o Endura, mas ainda faltava potência.

A sensação ao volante era que algo estava errado, provavelmente o câmbio era mais longo, visando redução de consumo. O fato é que o Ka 1.0 Zetec Rocam não era ágil, como Uno e Celta, por exemplo, e irritava os mais impacientes no primeiro semáforo.

Já o 1.6 era uma delícia! O motor sobrava no Ka, casava como uma luva com a dinâmica do carro. Era um hot hatch que oferecia tudo o que um entusiasta sem muitos recursos pode querer. Tudo isso sem ter uma distribuição de peso desproporcional, como ocorre nos hatches com motores maiores, nem consumo tão elevado. 

Era um carro que você poderia usar perfeitamente durante a semana, no trânsito da cidade, e no fim de semana, no autódromo mais próximo. Infelizmente, os problemas no sistema de arrefecimento do Zetec atrapalharam as vendas e mancharam a fama do Ka.

Mais adiante, tive um Ka+ 1.5 SEL, versão topo de linha à época. Contava com o excelente sistema de infotenimento Sync, com Bluetooth e comandos no volante. A excelente dinâmica continuava presente, e o 1.5 Sigma era bem-casado com o câmbio, dando ao carro uma performance razoável. 

Mas a qualidade construtiva já não era a mesma. O Ka de terceira geração era perceptivelmente um produto inferior. Os barulhos internos começavam cedo, e o modelo tinha diversos problemas crônicos.

Era comum a junta da tampa de válvulas apresentar vazamento, o que levava o lubrificante a atingir a parte de cima do motor, empoçando nas cavas onde ficam as velas. Isso era perceptível quando se removia os cabos de velas, que vinham sujos de óleo.

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Há relatos da bomba d’água apresentando desgaste prematuro, com vazamentos que podem levar a um superaquecimento do motor. E há ainda relatos da correia de acessórios com deterioração precoce.

Mas o pior problema que tive com meu Ka+ aconteceu no excelente câmbio IB5. Compartilhado com diversos modelos da Ford, o IB5 apresentou durante alguns anos da última década desgastes prematuros em seus componentes internos. Como engenheiro, tenho uma teoria sobre a origem desses desgastes, mas isso fica para outro texto.

Tudo começa quando, um belo dia, você engata a primeira marcha do seu Ka para arrancar de um semáforo, ou para sair de casa. Ao soltar a embreagem você escuta um barulho, sente um tranco e vê a alavanca voltar sozinha ao ponto morto. 

Com o tempo esse sintoma vai piorando, até que você praticamente não consegue usar a 1ª marcha. Nesse ponto, a 2ª marcha começa a arranhar e, se você não parar o carro para resolver o problema, ela vai ter o mesmo destino da 1ª.

Mas vamos dizer que você parou o carro e trocou os componentes da primeira e segunda marcha. Depois de algumas dezenas de milhares de quilômetros a 3ª marcha vai começar a arranhar. Duvida? Então assiste nosso vídeo onde mostro esse problema acontecendo em um Ford Ka+ 2015, do mesmo ano do meu ex Ka:

Para felicidade dos amantes de automóveis, o Ka é um modelo com qualidades raramente encontradas em seus concorrentes, e com defeitos que são contornáveis. É um dos modelos mais acessíveis para quem quer começar no automobilismo amador, aventurando-se em hot laps e track days, e possui receitas prontas para preparação. Mas ele foi feito para ser um carro popular, e carros populares, por definição, não podem ter manutenção complexa ou muito frequente. Nisso, infelizmente, a Ford não teve tanto êxito.

Imagens: Divulgação

Este texto contém análises e opiniões pessoais do colunista e não reflete, necessariamente, a opinião da Mobiauto.

Antonio Frauches, engenheiro mecânico e entusiasta do mundo automotivo.

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