Honda mudou radicalmente sua estratégia no Brasil. Valeu a pena?
Administrar a gama de produtos é ao mesmo tempo vital e desafiador no mercado. Gerir seus produtos e suas atualizações “legais” não é algo necessariamente novo. Afinal, há bons anos temos passado por diversas exigências ligadas a emissões e outras adequações legais que sempre desafiam as marcas a cadenciar corretamente a atualização de seus modelos.
Isso envolve altos investimentos que, por mais “puros” e bem-intencionados que sejam, não são emocionalmente valorizados pelos consumidores. Ou seja, investimentos são realizados e custos adicionados, o que teoricamente impactam nos preços. Como fazer um consumidor pagar por algo que ele não valoriza? Bela missão.
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Poucas vezes nos deparamos com marcas absorvendo estes custos e não repassando aos consumidores. Na maior parte este repasse é adicionado diretamente no preço.
Mas vamos ao ator principal desta análise do artigo de hoje. Falando de gestão de gama, sendo franco, eu não sei o que a Honda planejou ou não planejou quando resolveu derreter a sua gama de produtos.
Como sempre falo, tenho a certeza que existiu uma reunião, em uma sala, em um dia específico, na qual no final alguém falou a frase: “aprovado, vamos seguir com esta estratégia!”. E assim se fez.
Todo
o burburinho sobre a atualização iminente do HR-V e City bombava lá pelos idos
de 2021. E em dezembro do mesmo ano a Honda de uma vez só anunciou que o Fit e
o Civic não seriam mais produzidos. Sim, dois modelos icônicos na história da
Honda no Brasil foram exterminados no mesmo dia.
A Honda prometia duas coisas sobre estes carros. No caso do Fit se vendia a proposta que o inédito City Hatch o substituiria e no caso do Civic que a nova geração chegaria importada no 2º semestre de 2022. Falaremos disso em breve.
E a Honda não parou por aí. No começo de 2022 chegou o anúncio de que o WR-V também deixaria de ser produzido, algo já especulado quando do anúncio do Fit, e que o HR-V teria sua produção interrompida na geração atual até a chegada da nova geração no 2º semestre. Neste momento eu só consigo pensar na cabeça de um concessionário vendo seus produtos desaparecer perante o alto investimento em uma estrutura dimensionada para um determinado volume e passagens em vendas e pós-vendas, além da manutenção de empregos em toda a sua cadeia produtiva. E para vender ele teria apenas o City Sedan e Hatch na sua nova geração.
Puxando
este gancho de volumes, fiz um exercício de análise das vendas. No gráfico,
coloquei a média mensal de vendas para embasar minha avaliação.
Utilizei os dados de emplacamentos de 2007 a 2023. Levei em consideração os produtos que colaboram com volumes de uma forma expressiva. O que isso quer dizer? Que teve anos onde existiram a venda do Accord mas em um volume que não mudava a história e assim ele não entrou na conta.
Toda vez que um modelo digamos mais “emblemático” era lançado, eu o destacava na parte de cima do gráfico, assim como quando algum veículo saia de linha. A derrocada de 2021 e 2022 está lá!
Análise: é interessante ver que a partir de 2008 a Honda atingiu um patamar no qual se manteve até a 2019. Exceções apenas para 2010 onde o Civic estava prestes a ser atualizado e 2020/21 onde a pandemia derrubou o mercado como um todo. Agora, sem o Fit, WR-V, e Civic, ofertando o City Hatch e Sedan e HR-V, vemos no mundo pós pandêmico a sua média mensal em atingir apenas cerca de 4.700 em 2022 e 6.000 em 2023.
E
como esta nova gama pode realmente substituir produtos tão icônicos?
Primeiro Honda Fit. No arco de tempo do gráfico acima, o Fit se manteve na 2ª posição de vendas dentro do line-up da Honda, sendo que em alguns anos foi o mais vendido. Como produto sempre foi reconhecido pelo seu espaço e versatilidade interna, associado a uma mecânica simples, com poucas visitas ao Pós-Vendas e quando sim com um baixo custo de manutenção. Ele sempre incomodou, seja na Fiat com os modelos Palio Weekend/Idea, assim como na Nissan com a Livina. Era, literalmente, uma pedra no sapato.
E a proposta é de termos o City Hatch para substituir o icônico Fit. Pode até ser mais atual, ter maior comprimento, mas na minha ótica não substitui. O City é um hatchback que não possui a mínima característica de produto para substituir um monovolume de sucesso como o Fit, tendo um porta-malas quase 100 litros menor, entre-eixos um pouco maior e mais baixo. Tudo isso começando hoje pela bagatela de R$ 136.600.
Agora
vamos falar do Civic. Primeiro carro produzido pela Honda no Brasil, ele chegou
lá atrás e importado. Me lembro das primeiras versões hatch com suas
espetaculares denominações VTi e Del Sol. Eram um sonho de consumo em um mundo
antes dominado apenas por nacionais como VW Gol GTi, Chevrolet Kadett GSi, Fiat Uno 1.6R e Ford Escort XR3.
Várias gerações vieram e consolidaram o Civic como uma referência no segmento de sedans médios, travando por anos a fio uma das maiores lutas no mercado com o seu arquirrival, o Toyota Corolla. O que não se imaginava é que após a Honda retirar o Civic de linha e mencionar que ele voltaria como importado 6 meses depois, ele apareceu em uma versão híbrida, com um preço salgado e em uma falta de timing terrível.
Como se não bastasse ele chegar em uma versão única e híbrida, ele se deparou com um dos maiores movimentos de mercado vistos atualmente. A chegada de SUV’s híbridos das marcas GWM e BYD posicionaram modelos modernos, cheios de tecnologia e apetrechos inovadores que nem o histórico irretocável dele foi suficiente. A Honda fala que seu baixo volume está ligado a baixas disponibilidades para importação. Sério? O carro chefe por anos agora virou nicho? A conta não fecha.
E
após perder o Civic, a Honda estipulou que o City seria seu sedan de linha de
frente. Não acho que a intenção seria que ele substituísse o Civic, mas o
mercado certamente leu isso pela ausência do seu irmão maior. Natural para uma
gama que sempre teve um sedan médio dominante.
Mas olhando para a nova geração, é inegável que a evolução foi considerável. Seu design ficou mais robusto lhe conferindo maiores proporções, o que na prática realmente aconteceu com seus 10,6 cm a mais de comprimento e 5,3 cm de largura. No entre-eixos, porém, as medidas não se alteraram, demonstrando baixas expectativas de maior espaço interno.
E comparado ao Civic? Sei que eu escrevi acima que a Honda não estipulou o City como seu substituto, mas se ele cresceu, aonde será que ele chegou?
Alerta de spoiler. Não chegou longe. Comparado ao Civic (que saiu de linha) ele fica aquém com dolorosos 8,8 cm a menos no comprimento, 10 cm no entre-eixos e 5,1 cm na largura. Só na altura ele ganha com 4,4 cm a mais, mas isso não é o que faz a diferença aqui. O City melhorou sim, mas não chegou no Civic, nem de perto.
Vamos
falar da sopa de letrinhas? Sim, este é um artigo de automóveis, não culinária,
mas eu não consigo deixar isso de lado com a Honda.
Tudo começou com o CR-V, um belo C SUV, que por anos se tornou o queridinho de uma categoria de clientes. E isso em um mundo sem Jeep Compass e Kia Sportage (o bonito tá?). Um longo tempo depois se juntaram a ele o HR-V e depois o W-RV. Ordem alfabética? Não, sopa de letrinhas.
Deles, o CR-V evoluiu constantemente, sendo que sua presença se tornou muito mais tímida que seus tempos de glória no nosso mercado. O HR-V é um caso à parte, com uma performance forte desde seu lançamento. A marca Honda com seu histórico de baixa frequência de manutenção e quando necessária barata, colaboraram e muito. O WR-V veio na sequência e junto a ele uma polêmica estrondosa. Eu estava no Salão do Automóvel no qual sua avant première aconteceu e me lembro bem da polêmica automática onde todos viam que o chamado carry over do Fit era grande, apesar da Honda falar que não. Por fim a sensação era que haviam piorado o Fit. Mas ele vendeu bem, pois a marca Honda mantinha nele a sua chancela.
E agora temos o HR-V renovado. Polêmico com seu motor de City com 126 cv. Tenho amigos que tiveram 2 ou 3 do anterior e trocaram de marca pois não aceitaram este novo motor. Dona de uma versão Turbo da 1ª geração, uma amiga não comprou o novo, mas a razão foi o preço. Pelo que a Honda pede, ela preferiu mudar de marca e ter um carro digamos maior e turbo da mesma forma. A marca? Eu falei há alguns parágrafos.
E agora teremos o HR-V americano. Sim, comecei o parágrafo igualzinho o anterior para causar mesmo.
Puxando o gancho da última polêmica. Não é a primeira vez que teremos em terras tupiniquins projetos diferentes que têm o mesmo nome mas que na verdade são desenvolvimentos totalmente diferentes e por razões mercadológicas. Lembrando apenas de um exemplo, quem consegue se esquecer do Opel Astra que aqui virou Chevrolet Vectra? Faz parte.
A Honda vem agora explorar um mercado acima do HR-V e abaixo da última geração do CR-V, que cresceu muito. E para este novo modelo ela está adotando a denominação ZR-V, mais uma sopa de letrinhas.
O interessante é que no mercado americano ele se chama HR-V e não convive com o nosso HR-V. E por que? Porque no mercado americano a leitura do segmento justificava um desenvolvimento totalmente diverso. Enquanto o nosso HR-V tanto na antiga quanto na nova geração se baseia na plataforma do Fit, o americano tem o Civic como sua base de projeto.
O Resultado? Temos um HR-V que pode sim ser chamado de ZR-V por aqui pois notoriamente está acima como produto. O nosso HR-V cresceu quando comparado à primeira geração, mas o americano, o nosso ZR-V foi muito além. Para ser menos repetitivo e mais claro, vejam o quadro comparativo abaixo. ZR-V na cabeça!
Você deve estar se perguntando. Mas se o ZR-V cresceu tanto, onde ele vai brigar pela atenção dos consumidores?
Buscando essa resposta, peguei o top seller e digamos o mais clássico, e foi neste momento que ficou claro que o ZR-V, por enquanto pelo menos em termos de tamanho, vem para brigar de frente.
Olhando para nada mais e nada menos que o Jeep Compass, o ZR-V esbanja em seu tamanho com surreais 16,6 cm a mais no comprimento, 2,9 cm de entre-eixos e 2,1 de largura. Do lado do VW Taos a diferença é menor mas não deixa de posicionar o ZR-V a frente com 10,9 cm a mais de comprimento e as demais medidas mais próximas do VW.
O pulo do gato agora é saber se as tecnologias presentes no ZR-V são outro diferencial que o posicionarão bem à frente da concorrência. Isso sem levar em conta a marca Honda, um asset que sempre pesa na balança.
Para dar aquele toque final em uma gama que será reposta com modelos de menor volume potencial como o Civic, a Honda apresentou há algumas semanas o novo Accord com tecnologia híbrida.
Me lembro bem em 1992 quando os primeiros Accord chegaram no Brasil. Um grande amigo da minha mãe e do meu pai tinha uma perua do Accord na cor vinho metálico. Ela era tão moderna que mais parecia uma espaçonave, algo saído de um filme de ficção científica. E era uma SW, então brilhava mais ainda em uma época dominada pela última geração da Chevrolet Caravan, pela VW Quantum renovada e pela Ford Royale chegando ao mercado. Mais cara, claro, a Accord SW vinha para mostrar que existia outro patamar.
Mas voltando para 2023, o Novo Accord é lindo e imponente como sempre, mas vem para fortalecer o Brand, não os volumes.
Mas para fechar este artigo podemos e devemos iniciar algumas teorias da conspiração.
Por que a Honda promoveu uma mudança tão inesperada e drástica na sua gama, alterando totalmente a sua oferta?
Tenho as minhas percepções e elas batem com as outras que ouvi. Lembram que falei sobre os investimentos que as mudanças legislativas impactam?
Uma das teorias bate em decisões difíceis onde se escolheu o que podia ser feito. Reparem que a produção local reduziu com a saída do Fit, WR-V e Civic. O HR-V continuou o que já existia e o City Sedan também, aparecendo como novo apenas o City Hatch.
A outra teoria chega a ser quase uma lenda urbana ou industrial na minha opinião. Fontes falam que a alta direção da Honda apostou que a pandemia e seus impactos fariam com que as exigências de emissões fossem ser adiadas e “aliviadas”. Mas isso não ocorreu.
Eu sinceramente prefiro acreditar na primeira teoria, onde certo ou errado, a empresa tomou uma decisão estratégica na qual ela acreditava. Decisões difíceis são mais comuns do que imaginamos. Elas doem, mas são inevitáveis em algumas situações.
E você? O que acha desta estratégia feita pela Honda no Brasil?
Este texto contém análises e opiniões pessoais do colunista e não reflete, necessariamente, a opinião da Mobiauto.
Adriano Castello Branco Resende, casado com a Renata e pai do Diego. Formado em Administração e com MBA em Marketing. Apaixonado por carros e com mais de 25 anos de experiência no mercado, com passagens nas áreas de Marketing, Produto e Comunicação em marcas como Fiat, Chrysler, Jeep, Nissan, Jaguar Land Rover e Renault.
Especialista Automotivo