As novas leis e pacote de R$ 4 trilhões para acelerar a virada ao carro elétrico

Com a adoção de novas regras e limites de emissões, europeus sentenciam motores de combustão à morte; indústria terá que reduzir 33% do consumo de energia
HG
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29.12.2022 às 12:31 • Atualizado em 12.11.2024
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Com a adoção de novas regras e limites de emissões, europeus sentenciam motores de combustão à morte; indústria terá que reduzir 33% do consumo de energia

Os fabricantes chineses iniciaram, em 2022, uma ofensiva sem precedentes no mercado europeu com mais de uma dezena de lançamentos, cobrindo os principais segmentos comerciais. 

“É uma situação muito complicada para as marcas europeias, e não uma mera coincidência. Estamos diante do maior desafio que a indústria automotiva enfrenta, no Velho Continente, desde o seu surgimento”, avalia o diretor de pesquisas da Capgemini Engineering, líder global de consultoria em alta tecnologia e inovação, Peter Fintl. 

A análise do executivo explica o porquê de a União Europeia (UE) ter aprovado um plano de incentivos de 750 bilhões de euros (o equivalente a mais de R$ 4 trilhões) para o setor, só até 2025, mas vai de encontro ao que idealiza a maioria dos brasileiros, para quem a virada da eletromobilidade é uma possibilidade remota. 

No Velho Continente, a Comissão Europeia pretende ter pelo menos 30 milhões de veículos elétricos (EVs) nas ruas e estradas, até o final desta década – um aumento exponencial das atuais 1,4 milhão de unidades.

Já no Brasil, onde é a paixão por automóveis que faz a roda girar, parece haver um consenso de que a eletrificação é um mero modismo, uma tendência passageira que pode ser contestada com críticas infantis, denegrindo as marcas chinesas com um golpe de goela.

Por meio de uma abordagem adulta, os europeus trabalham duro para atingir um objetivo que exige novas leis e regulamentações, além de metas para orientar países, estados, empresas e consumidores. 

“As gigantes automotivas atravessam um momento muitíssimo delicado na Europa. Com o descontrole da inflação, os preços dos carros zero-quilômetro subiram expressivamente, ao mesmo tempo em que somos obrigados a cumprir regulações ambientais que impõem um modelo mais ecológico”, pontua Fintl.

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Com a adoção de novas regras e limites de emissões, europeus sentenciam motores de combustão à morte; indústria terá que reduzir 33% do consumo de energia

Ou seja, os brasileiros ainda não se deram conta de que a virada da eletromobilidade não depende do livre mercado, nem se baseia na simples concorrência entre as marcas. 

Por aqui, nem os mais entendidos de carros compreendem tratar-se de uma questão legislativa, de novas regras que vão aposentar os motores a combustão da mesma forma que adoção obrigatória do sistema de transmissão digital fez as smartTVs aposentarem os aparelhos com tubo de imagem.

Basta ver que um antigo televisor preto-e-branco não consegue captar a programação da TV aberta atual, nem se estiver usando a antena que o personagem ET construiu, no cinema.

“A União Europeia determina a virada da eletromobilidade de várias maneiras, obrigando os fabricantes de automóveis a produzirem veículos de baixa emissão, ao mesmo tempo em que apoia o desenvolvimento de infraestruturas de recarga abrangentes”, elucida o membro finlandês do Parlamento Europeu, Miapetra Kumpula-Natri. 

“Destinamos 20 bilhões de euros (o equivalente a R$ 109,5 bilhões) só para instalação de 1 milhão de pontos de recarregamento. Também criamos uma Diretiva de Eficiência Energética (EED) com classificação de taxonomia, para que as indústrias relatem, detalhadamente, como reduziram, preveniram e gerenciaram as emissões para ter acesso a financiamentos”, segue. 

“Nosso objetivo é reduzir 32,5% do consumo total de energia da EU, até 2030. Essa meta só será alcançada acelerando a mudança para os EVs”, detalha o parlamentar, que também prevê que, com a entrada em vigor de novas leis para acelerar a virada da eletromobilidade, só nos próximos três anos mais de 350 modelos elétricos serão lançados no Velho Continente. 

“Não há futuro para os motores a combustão interna, principalmente entre carros de passeio e comerciais leves”, sentencia o diretor de pesquisas da Capgemini Engineering, Peter Fintl.

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China corre à frente

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A verdade é que, na corrida da eletromobilidade, a China está muito à frente da Europa, dos Estados Unidos e da América Latina, quando se trata de políticas para a eletromobilidade, conforme já contamos neste outro artigo

“Lá, cerca de 80% dos automóveis usados nas frotas públicas, como os veículos de uso administrativo e governamental, além dos táxis, têm emissão zero, algo que não é regulado na Europa e muito menos na América Latina”, comenta a diretora de políticas e-mobility do Escritório alemão de Transporte e Meio Ambiente (T&E), Friederike Piper.

“Na China, os comerciais leves são a porta de entrada para os EVs, assim como os modelos destinados às locadoras. Não é à toa que a alemã SIXT Rent, uma das maiores empresas de compartilhamento e aluguel de carros, com 110 anos de mercado, acaba de anunciar a compra de 100 mil unidades da BYD”, acrescenta.

A BYD, por exemplo, é hoje a maior companhia automotiva do mundo quando se trata de veículos eletrificados. O grupo, um dos titãs chineses, não tomou conhecimento dos anos que a Tesla levou para se firmar como referência global neste segmento, e tomou a liderança mundial das mãos do trilionário Elon Musk em uma ofensiva que não levou 40 meses.

“A BYD estabeleceu novos padrões com suas inovadoras baterias de fosfato de ferro-lítio (LFP), mas seu grande trunfo é também produzir motores elétricos e toda a parte eletrônica de que necessitam os modelos de nova energia”, destaca o fundador e diretor do Centro Europeu de Gestão Automotiva (CAM), Stefan Bratzel. 

“Para além disso, é uma montadora que controla diversas marcas e uma gama inigualável de EVs, que vai de sedans de alto luxo a grandes ‘SEVs’, que são os SUVs elétricos, passando por compactos que são quase 35% mais baratos que seus concorrentes produzidos por marcas europeias”, continua. 

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“Na China, a matriz enérgica é mais flexível que a do Velho Continente, e isso também significa uma coisa que os brasileiros tiveram há até pouco tempo: eletricidade a baixo preço. Eles se beneficiam de energia elétrica barata para impulsionar a produção e, consequentemente, as vendas de EVs”, explica.

O executivo enxerga o seguinte cenário: os Estados Unidos concentram suas influências política e econômica nas Américas Central e do Sul, os europeus olham para o próprio umbigo e os latino-americanos fingem que a virada da eletromobilidade é uma fantasia, uma fabulação que permanecerá no campo onírico. 

“Diante desta conjuntura, foi fácil para os chineses assegurar um fornecimento inesgotável de recursos provenientes da África, onde eles vêm investindo mais do que qualquer outro país, com obras infraestruturais colossais”, aponta Bratzel.

“Eles têm uma cadeia de suprimentos muito mais eficiente que a europeia e, apesar de o salário mínimo na China – o equivalente a R$ 1.745, na região de Shenzhen – ser bem maior do que no Brasil, ainda estamos falando de um custo de mão de obra sensivelmente inferior ao alemão, francês ou italiano”, frisa.

Para ele, não há sentido em europeus e latino-americanos apenas se queixarem daquilo que já está posto. “É tão estúpido quanto colocarmos a culpa no trabalho e no meio ambiente, por nossa falta de competitividade”, alerta o diretor do Centro Europeu de Gestão Automotiva.

“A [marca chinesa] NIO, por exemplo, abrirá centenas butiques, muito diferentes e infinitamente mais atraentes e modernas que as concessionárias tradicionais, para introduzir seus EVs nos principais mercados europeus. É uma temeridade para o tradicional mercado, engessado e conservador”, alerta o especialista.

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Brasil segue ilhado

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O Brasil está longe de ser uma ilha e o mercado doméstico de automóveis não está ilhado, apartado do que ocorre no restante do mundo. Neste ano, as vendas nacionais de carros de passeio e comerciais leves devem crescer 8%, em relação a 2021, mas não chegarão à casa dos 2 milhões de unidades, pouco mais da metade do recorde de 2011 – quando o mercado nacional superou os 3,4 milhões de unidades. 

Na China, que é uma espécie de termômetro global do setor, as vendas crescerão entre 9,5% e 10% em 2022, chegando na casa de 23,5 milhões de unidades ou 11 vezes mais do que por aqui. 

Apesar do volume estratosférico, a Associação Chinesa de Fabricantes de Automóveis (CAAM) está preocupada com a atual conjuntura e já anunciou que, para 2023, espera uma grande desaceleração econômica que, somada à persistência na crise de semicondutores, não chegará a contrair as comercializações, mas irá trazer a alta para um patamar bem mais baixo, de 1,5%.

De qualquer forma, estamos falando de uma previsão de 23,5 milhões de unidades, o que significaria mais de dez zero-quilômetros vendidos para cada um brasileiro. 

Diante destas projeções, a CAAM já negocia com o governo chinês uma extensão dos incentivos fiscais para os veículos equipados com motores a combustão interna. “O objetivo é evitar uma rápida desaceleração do mercado e os benefícios tributários durariam por só mais este ano – de 2023”, disse o vice-secretário-geral da entidade, Chen Shihua. 

No último mês de junho, o governo chinês reduziu pela metade o imposto de compra – para 5% – para os modelos com motorização de até 2.0 litros e preço final de até 300.000 yuans (o equivalente a R$ 225 mil). 

“Curiosamente, o corte de impostos que pretendia estimular o mercado chinês, por causa do fechamento de Xangai em virtude da pandemia, acabou impulsionando as exportações, com um aumento de 12% nas remessas só até novembro”, comenta Shihua.

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Ou seja, por qualquer prisma que se olhe, o Brasil está à deriva, quando se trata do futuro dos setores automotivo e de mobilidade. “Hoje, no Brasil, os híbridos plug-in são praticamente inexistentes”, reconheceu o presidente da Associação Brasileira dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Márcio de Lima Leite, no início deste mês de dezembro. 

“Estamos falando de 7,5 mil veículos deste tipo, mas a tendência é que no futuro tenhamos um volume maior desta tecnologia que é fundamental para a indústria cumprir seu compromisso – com o governo – de descarbonização”, completou, em tom de justificativa.

Pior, enquanto nem mesmo a tecnologia que está sendo rifada nos Estados Unidos, Europa, Japão e China emplaca por aqui, os EVs (modelos 100% elétricos) não chegam a 0,5% (meio por cento) das vendas.

Traduzindo em números, enquanto as comercializações de elétricos, em todo o território nacional, ficam na casa das 720 unidades mensais, na China comunista este número salta para 113 mil unidades mensais ou 157 vezes mais. 

Pior ainda, a indústria nacional vai se desqualificando e inflacionando os preços dos automóveis de passeio e comerciais leves que produz, apertando o torniquete no pescoço do consumidor, ao mesmo tempo em que exporta cada vez menos e importa cada vez mais. 

Os modelos estrangeiros, que há um ano representavam 11,7% das comercializações, hoje respondem por 12,2% do total. 

“O governo chinês se deu conta, antes de outros, de que o futuro da mobilidade é eletrificado, e estabeleceu marcos políticos e incentivos industriais. Agora, a China está apenas colhendo os frutos”, clarifica Peter Fintl, diretor de pesquisas da Capgemini Engineering.

Como se vê, os fatos de o Brasil ter virado mercado de desova e de o consumidor não dar a mínima para isso é a crônica de uma morte anunciada...

Imagens: Shutterstock

Este texto contém análises e opiniões pessoais do colunista e não reflete, necessariamente, a opinião da Mobiauto. 

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