Carros elétricos farão fábricas jogar fora maquinário bilionário

Gastos com maquinário incluem 155 mil novas ferramentas para o lançamento de mais de 130 modelos elétricos, até 2030; já em São Paulo, inovação cai 10,5 pontos percentuais
HG
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08.09.2023 às 18:15 • Atualizado em 12.11.2024
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Gastos com maquinário incluem 155 mil novas ferramentas para o lançamento de mais de 130 modelos elétricos, até 2030; já em São Paulo, inovação cai 10,5 pontos percentuais

No Brasil, a virada da eletromobilidade ainda é encarada como um fracasso retumbante, um surto passageiro que os países desenvolvidos estão encarando e que, como a pandemia, um dia será superado. Mas no mundo real, o setor de maquinaria e ferramental espera um crescimento de mais de 40% só neste triênio, de US$ 5 bilhões (o equivalente a R$ 24,4 bilhões) em pedidos, contratados no ano passado, para US$ 7,1 bilhões (R$ 34,6 bilhões), em 2025.

“Há um otimismo muito grande, em função do lançamento comercial de mais de 130 novos EVs até 2030, só nos mercados norte-americanos. Depois de um período de dificuldades financeiras, os fornecedores se preparam para um aumento significativo dos gastos de montadoras e fabricantes, que totalizarão US$ 26,7 bilhões (R$ 130 bilhões), incluindo a construção e a conversão de 56 fábricas para eletrificação de suas gamas”, conta a presidente-executiva (CEO) da Harbour Results, consultoria que monitora tendências da indústria pesada nos Estados Unidos, Laurie Harbor.

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A executiva está falando de uma coisa muito simples, que é ignorada pelos mais “entendidos” dos tupiniquins, mas que qualquer pré-universitário europeu e chinês está careca de saber: que a transição energética do segmento automotivo se funda em novas tecnologias e novas linhas de montagem. “Os lançamentos que vimos, até 2020, não demandaram novos ferramentais, mas os EVs precisam de uma maquinaria dedicada, independentemente de seu volume inicial de produção”, explica Laurie.

Na prática, isso significa que, enquanto as montadoras norte-americanas encomendam ferramental específico para produção de EVs, o Brasil segue apartado da virada da eletromobilidade e, pior, com um parque industrial que ficará sucateado ainda mais rapidamente, nos próximos cinco anos.

Se tomarmos, para além dos investimentos, o número de equipamentos encomendados neste triênio, anteveremos o abismo que seguirá nos separando do ‘Primeiro Mundo’: para o ano que vem, os fabricantes instalados nos EUA já encomendaram 39,8 mil novas ferramentas e, para 2025, outros 46,1 mil novos bens de produção.

Ou seja, só nos próximos dois anos, as montadoras norte-americanas terão mais linhas de montagem de EVs do que todo o setor brasileiro possui, hoje, para a produção de carroças do século passado. Vamos a alguns dados:

Enquanto as melhores empresas mundiais do setor industrial apresentam um percentual de eficiência de 55% para processos de usinagem, no Brasil está na casa de 23%, segundo dados da Associação Brasileira da Indústria de Ferramentais (ABINFER).

No mesmo sentido, nosso parque fabril tem, em média 21 anos de idade, contra 11 anos, dos chineses, e apenas sete, dos alemães. “A eletrificação do setor automotivo, nos próximos cinco anos, será mais rápida do que nos últimos 20 anos”, projeta Laurie.

“Todavia, existem montadoras norte-americanas que investirão mais em ferramental para fabricação de automóveis com motores a combustão do que para EVs. É o caso da Stellantis, que seguirá lançando mais modelos convencionais, na América do Norte, mesmo diante do crescimento na participação de mercado dos 100% elétricos. No ano que vem, o grupo vai investir US$ 900 milhões neste tipo de bem de produção, contra ‘apenas’ US$ 100 milhões em linhas totalmente eletrificadas”, destaca a executiva.

“Transição acontecendo”

Aqui, cabe uma observação importantíssima: os EVs trazem grandes mudanças para os fabricantes de ferramentas e matrizes industriais. Existem muitos sistemas, como a linha de alimentação de combustível e escapamento, que são eliminados e outros, como a transmissão, que são bastante simplificados.

“Os veículos elétricos têm menos peças, um número menor de componentes, se comparados aos modelos convencionais, com motor a combustão. Em contrapartida, existe uma demanda por pacotes de baterias e motores trifásicos que abrem um novo campo para negócios num mercado em rápido crescimento”, pontua o presidente da Bowman Precision Tooling, indústria canadense que fornece matrizes para estamparia em aço e alumínio de alta resistência para General Motors, Ford e Stellantis (Jeep e RAM, principalmente), Jamie Bowman.

“Há uma transição acontecendo e, hoje, 80% de nossos negócios advém da eletrificação do setor. É um segmento industrial que seguirá com grande demanda, já que as montadoras buscam materiais cada vez mais leves e avançados para seus EVs, como forma de aumentar seu alcance”, acrescenta.

Bowman concorda com a premissa da CEO da Harbour Results, Laurie Harbor, de que EVs precisam de novos ferramentais para serem produzidos. “Só para o triênio atual, os pedidos de Toyota, Honda, Nissan e Hyundai – ou seja, as maiores montadoras asiáticas instaladas nos Estados Unidos – somam US$ 1,3 bilhão – o equivalente a R$ 6,33 bilhões.

Parece óbvio que, nos próximos anos, elas vão capitalizar isso, mas o mais importante é ficar entre os líderes na virada da eletromobilidade. E estamos falando de toda uma cadeia produtiva, especialmente de pequenos e médios fornecedores, já que veremos o lançamento de um número sem precedentes de EVs nos próximos anos”, sublinha ele.

Já no Brasil, o futuro é temerário, porque o gigante segue dormindo em berço esplêndido. Em São Paulo, motor da indústria automotiva nacional, o que era para ser inovação dá lugar à obsolescência.

“De acordo com a Pesquisa Industrial de Inovação Tecnológica (PINTEC) do IBGE, a taxa global de inovação do setor de máquinas e equipamentos do Estado diminuiu de 41,8%, no período de 2006 a 2008, para 26,4%, no intervalo entre 2015 e 2017, ficando abaixo da taxa de inovação global média, que alcançou 31,3%. Esse setor envolve a produção de uma ampla gama de componentes, partes e peças que alimentam, por sua vez, uma grande variedade de indústrias, tais como transporte, máquinas e equipamentos agrícolas, além daquelas de uso mais específico relacionadas à metalurgia”, aponta o Analista da Fundação Seade, Luís Fernando Novaes, em estudo do governo paulista de junho deste ano.

Descompasso com o mundo

Quem conhece o termo obsolescência programada sabe que trata-se de um conceito econômico bastante simples, em que a vida útil de um produto é abreviada pela impossibilidade de atualizações ou, simplesmente, por um “chip da morte” semelhante ao Eeprom, que aposenta compulsória e deliberadamente um eletroeletrônico, obrigando o consumidor a substituí-lo. No caso brasileiro, nossa indústria automotiva pode vir a óbito na virada para a segunda metade deste século.

É quando, irremediavelmente, as regras de comércio internacional decretarão o fim dos motores a combustão até nos países de “Terceiro Mundo”. Daí e sem termos passado por um processo de reindustrialização, deixaremos de ser produtores e exportadores de automóveis para nos tornarmos importadores de EVs das mais variadas classes, de empilhadeiras a máquinas agrícolas, de motos a caminhões pesados, passando por todos os segmentos de carros de passeio – dos novos ultracompactos aos sedãs de prestígio.

No Brasil, os motores a combustão (flexíveis e a diesel) ainda serão maioria na frota em 2035, o que alimenta uma defesa inglória dos biocombustíveis como saída preferencial para redução das emissões de CO2.

“Precisamos de investimentos da ordem de R$ 150 bilhões em tecnologia e infraestrutura pela cadeia automotiva, nos próximos 15 anos, e também pelos produtores de combustíveis, de energia e pelo poder público. No mais otimista dos cenários, os EVs responderão por 22% do mercado brasileiro de automóveis – carros de passeio e comerciais leves – em 2030 e, algo acima de 32%, em 2035”, projeta o ex-presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Luiz Carlos Moraes.

Apenas para o leitor ter uma ideia, a participação dos EVs no mercado sueco, no primeiro semestre deste ano, foi de 60% e, no norueguês, de 90% - contra 0,4% no mercado brasileiro, entre janeiro e junho, com míseras 3.760 unidades.

Na Europa como um todo, os EVs já respondem por 13% das vendas (696,6 mil unidades) de 0 km e, nos Estados Unidos, as comercializações de veículos elétricos (557,3 mil) cresceram 50% em relação a 2022. Na China comunista, foram vendidos 2,7 milhões de EVs só neste primeiro semestre, contra 934,5 mil unidades de todas as categorias somadas do mercado brasileiro.

Ou seja, se aquele seu primo que “sabe tudo de carros” não estiver redondamente enganado, ao negar a virada da eletromobilidade, seguiremos em descompasso com as principais nações do mundo.

Mas note, caro leitor, que há um compasso entre os R$ 130 bilhões que os norte-americanos investirão só em ferramental para EVs, até 2026, e os R$ 150 bilhões que o ex-presidente da Anfavea projeta para o Brasil, até 2035. São valores praticamente idênticos e como a Matemática é uma ciência exata, chega a ser ingênuo pensar que nos equipararemos aos EUA sem um grande programa de reindustrialização, no mínimo, equivalente ao que se implementa por lá...

Este texto contém análises e opiniões pessoais do colunista e não reflete, necessariamente, a opinião da Mobiauto.

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