Gigante automotiva em “pé de guerra” com fornecedores, nos EUA
Mesmo com a paralisação de fábricas e milhões e prejuízos,
Stellantis não está disposta a retroceder em sua política de “sem mais
reclamações”; parceiro não entendem “conflitos constantes”
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Hoje, qualquer pré-adolescente apaixonado por carros é capaz de listar, de cor e salteado, todas as marcas, seus modelos e versões à venda no Brasil, detalhando potência e preço de cada uma delas. O que até os adultos não se dão conta é que a denominação “montadora” tem uma razão de ser e ela quer dizer que os fabricantes, na verdade, fabricam muito pouco daquilo que usam para “montar” um automóvel de passeio, comercial leve ou veículo pesado.
Na verdade, elas compram uma infinidade de itens dos mais variados fornecedores para fabricarem seus produtos e, como o leitor deve estar imaginando, são contratos que regem as relações entre estas partes.
“Hoje, precisamos que os fornecedores compreendam que, para nossos clientes acessarem um zero-quilômetro, é necessário que eles se comprometam em reduzir custos”, destaca o presidente-executivo (CEO) da Stellantis, Carlos Tavares.
A Stellantis é o quinto maior grupo do setor, em nível mundial, e, no ano passado, suas 14 marcas (entre elas, Citroën, Fiat, Jeep, Peugeot e RAM) venderam 6,5 milhões de unidades, contra 10,8 milhões da líder global, a Toyota – o Grupo Volkswagen vem em segundo, com 8,8 milhões de unidades.
Ocorre que, desde a fusão entre a Fiat Chrysler Automobiles (FCA) e a Peugeot-Citroën (PSA), criando a Stellantis em 2021, a relação da nova gigante automotiva com os antigos fornecedores tem sido cada vez mais tensa. Há dois anos, a companhia tentou implementar um conjunto de termos e condições para seus parceiros norte-americanos, forçando-os a repassar todas suas economias de custos e a permanecerem presos a contratos desfavoráveis.
A reação dos fornecedores de autopeças foi tão negativa, que
a Stellantis rescindiu os termos, apenas cinco meses depois. Mas a relação
segue em “pé de guerra” e, agora, suas marcas enfrentam paralisações de
fábricas e atrasos, devido à recusa de fornecedores de lá em enviar insumos
para as linhas de produção – e mais paralisações são iminentes.
“Se – o problema com os fornecedores – não for remediado rapidamente, o impacto
financeiro será catastrófico e causará dezenas, senão centenas de milhões de
dólares em danos de paralisação, além das perdas incalculáveis por ser excluída
do futuro fornecimento e ver vários funcionários demitidos, forçosamente”, é o
que disse a Stellantis em um pedido de ordem de restrição temporária, que foi
negado pelo Tribunal de Oakland, onde a disputa foi parar depois de a gigante
adotar uma linha dura em relação a fornecedores que buscam, apenas e tão
somente, alívio diante de custos inflacionários.
Adotada em janeiro, esta política de “sem mais reclamações”
levou pelo menos dois parceiros de Nível 1 – ou seja, fornecedores direitos e
imprescindíveis para a operação de montagem – a pararem de enviar suas
autopeças à montadora.
A paralisação de duas fábricas da Stellantis, em Toledo (Ohio) e Kokomo (Indiana), no final de março, traz milhões de dólares em prejuízo, mas o fabricante não está disposto a retroceder e sua posição é de que os fornecedores não podem rescindir contratos de longa data, por mais desfavorável que a economia norte-americana possa ter se tornado, nos últimos anos. Já os advogados dos fornecedores chamam os processos abertos pela Stellantis de uma “falsa emergência”, nascida da recusa de meses em renegociar.
As disputas expõem a frágil interconectividade da rede de abastecimento e oferecem uma rara visão do relacionamento tenso entre o grupo e seus “parceiros”. Mas a situação piorou dramaticamente no início deste ano, quando a vice-presidente de compras e gerenciamento da cadeia de suprimentos, Marlo Vitous, disse que a companhia não aceitaria “mais reclamações por aumentos de custos”.
O chefão Tavares, então, sugeriu planos para adotar uma postura ainda mais dura com os fornecedores, mas isso só fez com que a relação deles com a Stellantis se tornasse “tóxica” a ponto de considerarem encerrar os negócios com a montadora.
Processos e mais processos
O fato é que, presos a novos contratos de trabalho – mais dispendiosos - com o sindicato dos operários norte-americanos (UAW) e “correndo por fora” na virada da eletromobilidade que, além da concorrência da Tesla, agora vê uma invasão de marcas chinesas, a Stellantis procura reduzir custos em outra ponta do negócio. E embora os fabricantes de automóveis tenham obtido lucros recordes, nos últimos anos, os fornecedores de autopeças suportaram o peso do impacto financeiro da crise.
A companhia processou a Kamax, fornecedor alemão de Nível 1, no final de fevereiro, uma semana depois de o fornecedor de fixadores parar de enviar seus insumos. Um juízo de Toledo concedeu uma liminar para a gigante automotiva, em março, forçando a Kamax a continuar enviando peças. Já o processo movido no início deste mês pela Stellantis, contra a MacLean-Fogg Component Solutions LLC, com sede em Illinois, tomou um rumo diferente – com a liminar sendo negada.
A empresa, que fornece pinhões e engrenagens para transmissões dos modelos da Jeep, do grandalhão RAM 1500 e outros veículos do grupo, disse à Stellantis que interromperia o envio de peças, a menos que recebesse um aumento de preço de 26%, totalizando US$ 100 mil (o equivalente a R$ 540 mil) adicionais, por semana, retroativos a janeiro. Duas semanas depois, ela parou de fornecer peças, forçando o fechamento das linhas de produção em Kokomo, o que resultou em danos de US$ 3,7 milhões (R$ 19,2 milhões), segundo o processo.
A montadora, então, emitiu ao fornecedor um pedido de
compra, com depósito em juízo, para que mantivesse aberta a fábrica de Kokomo,
justificando que levaria de 18 a 24 meses para obter os mesmos insumos de outro
fornecedor – no entanto, não fez o depósito ou qualquer outro pagamento.
Ainda assim, o juiz do caso negou o pedido de emergência para uma ordem de
restrição temporária e uma liminar que teria forçado o fornecedor a continuar
enviando autopeças.
O presidente-executivo (CEO) da AlphaUSA, Chuck Dardas, acreditou que, após
meses de negociação, havia chegado a um acordo com a Stellantis para vincular o
contrato a um índice de reajuste, protegendo seu negócio das grandes flutuações
de preços. Mas o combinado não foi posto em prática. “Conversando, achei que
havíamos chegado a um acordo, mas o acordado não foi honrado”, contou Dardas à
“AutoNews”. Para ele, é uma situação frustrante.
“Entregamos nossos insumos a eles todos os dias, pontualmente, e, quando chega a hora de honrarem os compromissos, isso não acontece. É apenas esse conflito constante e não entendemos isso”, acrescentou.
Como o leitor que chegou até aqui pode imaginar, desentendimentos entre fabricantes de automóveis e fornecedores são uma história tão antiga como a indústria, mas proliferaram durante a crise da cadeia de abastecimento induzida pela pandemia, quando as montadoras obtinham grandes lucros, ao passo que seus fornecedores absorveram a inflação. Embora seja atípico que as montadoras concedam alívio nas negociações por preços, é incomum que uma disputa se transforme em litígio, ou seja, que vá parar na justiça
“No caso da Stellantis, foi adotada uma política muito inflexível e a equipe de compras norte-americana não tem mais autoridade, porque tudo é conduzido pela matriz europeia”, conta o advogado Dan Sharkey, do escritório Brooks Wilkins Sharkey & Turco PLLC, que trabalha no setor desde 1978. “O negócio tinha como base os relacionamentos e não apenas resultados financeiros. Isso tudo acabou e não estamos mais lidando com pessoas”, lamenta.
De acordo com o estudo anual do “Índice de Relações de Trabalho entre OEMs e Fornecedores Automotivos da América do Norte”, conduzido pela consultoria Plante Moran, uma das maiores dos Estados Unidos, a Stellantis tem se classificado consistentemente na última posição quando se trata de relações com fornecedores.
“A companhia melhorou, ligeiramente, sua posição na última edição do estudo – 2023 -, mas ainda ficou em último lugar entre as seis maiores montadoras norte-americanas”, observa o diretor e condutor da pesquisa, Dave Andrea.
"Os relacionamentos com fornecedores são complexos e exigem muito mais do que apenas uma comunicação melhorada. Eles exigem alinhamento e bom relacionamento por parte da Stellantis”, avalia Andrea.
Jornalista Automotivo