Não adianta taxar: chineses terão 33% do mercado mundial, já em 2030
Todo mundo tem um conhecido, um amigo, um primo, um irmão ou marido “entendido de carro”. Na esmagadora maioria dos casos são pessoas que, apenas e tão somente, decoraram as marcas e modelos à venda no Brasil, se dando ao trabalho de memorizar preços e motorizações da maioria deles.
São, com o perdão da analogia, como papagaios que conseguem repetir palavras ditas por humanos sem, contudo, abstrair seu significado. Faço esta introdução porque nem seu conhecido, nem seu amigo, nem seu primo, nem seu irmão e muito menos seu marido têm ciência do que a AlixPartners, uma das maiores consultorias empresariais e financeiras do mundo, acaba de divulgar no seu mais recente relatório: que as marcas chinesas abocanharão 33% das vendas globais, até 2030.
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“Não estamos falando de as marcas ocidentais competirem com as chinesas, atrás da Grande Muralha, mas de as montadoras tradicionais perderem participação em todos os mercados, incluindo a liderança em seus próprios países”, destaca o vice-diretor de prática industrial da consultoria norte-americana, Mark Wakefield – que, diga-se de passagem, entende infinitamente mais deste setor do que o quinteto de sabichões supracitado.
Para Wakefield, mesmo que os Estados Unidos e a União Europeia (EU) insistam no protecionismo regional, taxando os EVs importados da China para blindar seus mercados internos, as gigantes chinesas marcharão para o domínio global com base na força das suas ofertas.
“Com o aumento de tarifas, o máximo que se conseguirá é ganhar tempo, afinal, o simples estabelecimento de uma produção local pelos chineses, principalmente na Europa, fará com que esta política não dê em nada”, explica o colíder de prática automotiva da AlixPartners, Andrew Bergbaum.
Nos EUA, a administração Biden aumentou as tarifas sobre EVs chineses, em maio, para 102,5% (contra 27,5% anteriores) e aqui, em Pindorama, híbridos tradicionais, híbridos plug-in e elétricos puros iniciaram esta semana com novas alíquotas: de 25% (antes 12%), 20% (antes 12%) e 18% (antes 10%), respectivamente.
Até julho de 2026, portanto daqui a dois anos, o imposto de importação para o trio será unificado em 35%, triplicando a carga tributária em relação a janeiro deste ano. Como o leitor deve imaginar, isso encarecerá os modelos de novas energias, permitindo que as transnacionais aqui instaladas sigam vendendo automóveis ultrapassados, equipados com motores a combustão interna, pelos maiores preços do mundo – e, o que chega a ser kafkiano, botando a culpa dos valores aviltantes justamente nos impostos.
“O consumidor brasileiro quer o carro elétrico e nós temos que trazer isso para nossa cadeia produtiva, entendendo como se dá a transição. Em alguns casos, de forma imediata, mas, em outros, não”, pondera o presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Márcio de Lima Leite. “Não se trata de atraso, mas de uma realidade distinta”.
“Apartheid” automotivo, no Brasil
Ouvindo a fala de Leite, fica a impressão de que a Anfavea projeta uma espécie de “apartheid” automotivo para o Brasil, segregando os EVs chineses aos ricos, que podem assimilar cargas tributárias astronômicas, ao mesmo tempo em que a classe média ignara vai se ferrar com a desova de modelos a combustão, dotados do mesmo conceito da virada do século 19 para o 20.
O problema é que, na contramão do neoliberalismo protecionista, os fabricantes chineses têm benefícios de seu governo que lhes permitem oferecer seus produtos a preços até cinco vezes menores do que as médias europeia e norte-americana. Nos EUA, há acordos comerciais com o México, por exemplo, que dariam até isenção para modelos chineses, contanto que eles tivessem sotaque ‘chicano’ – um índice de nacionalização de 75%.
“A cota das marcas chinesas, na Europa, chegará a 12% até 2030, mas em países como a Rússia, esta fatia será ainda maior, triplicando da participação atual para 69%. Nas Américas Central e do Sul, ela chegará a 28%, enquanto no Oriente Médio será de 39% e no Sul e Sudeste Asiáticos de 30%”, enumera o colíder de prática automotiva da AlixPartners, Andrew Bergbaum.
“Em contrapartida e para piorar a situação das montadoras ocidentais, as marcas chinesas que, hoje, detêm 59% do mercado atrás da Grande Muralha, aumentarão sua fatia doméstica para 72%, nos próximos cinco anos”, completou.
Em outras palavras, os fabricantes tradicionais perderão participação no maior mercado do mundo, onde se vende duas vezes mais automóveis do que nos Estados Unidos – aposto que nem seu amigo, nem seu primo, nem seu irmão e muito menos seu marido sabem disso.
É claro que, entre os sabichões, impera o negacionismo automotivo, mas os maiores consultores do mundo têm uma visão bem diferente sobre a virada da eletromobilidade. “Na China, há uma cultura de atualização mais rápida dos produtos, em relação às marcas ocidentais. E não adianta virem com a conversa, a mentira de que há trabalho forçado – vulgo, escravo – na produção de baterias. O fato é que os fabricantes chineses têm anos de experiência com EVs e os consumidores de lá estão à frente dos europeus e norte-americanos em relação à tecnologia. Seus automóveis estão na vanguarda, porque todo um ecossistema foi construído, do zero, para dar suporte à eletromobilidade. Existem marcas chinesas de EVs com apenas um ano e meio de mercado muito à frente das ocidentais”, assegura o vice-diretor de prática industrial da AlixPartners, Mark Wakefield.
Quando penso que, em 1985, o Brasil produzia quase um milhão de carros de passeio e comerciais leves por ano, enquanto a produção chinesa não passava de 5.200 veículos e, portanto, era 180 vezes menor, dá vontade de pular da ponte...
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Jornalista Automotivo