Quem vai pagar por acidentes com carro autônomo será você

Depois de R$ 1 trilhão em investimentos, tecnologia esbarra na falta de ordenamento legal coeso; Drive Pilot, da Mercedes-Benz, promete liberar condutor para “atividades secundárias”
HG
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26.06.2023 às 17:15 • Atualizado em 12.11.2024
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Depois de R$ 1 trilhão em investimentos, tecnologia esbarra na falta de ordenamento legal coeso; Drive Pilot, da Mercedes-Benz, promete liberar condutor para “atividades secundárias”

Quem tem mais de 50 anos de “quilometragem” sabe que o carro sem motorista é um sonho antigo, uma promessa que vem sendo renovada desde os anos 30, quando muita gente acreditava que, na virada do milênio, os automóveis seriam capazes até mesmo de voar, como no desenho animado dos “Jetsons”.

Independentemente do enorme atraso, a Mercedes-Benz acaba de dar o maior passo no campo da condução autônoma com a oferta do Drive Pilot, primeiro sistema de Nível 3 aprovado por agências reguladoras da Europa (Alemanha) e dos Estados Unidos (Estados de Nevada e Califórnia), que já está disponível nos mercados alemão e norte-americano para as versões 2024 do Classe S e do EQS Sedan.

A tecnologia é um opcional e, na Alemanha, acresce 5.000 euros (o equivalente a R$ 26.260) ao preço do modelo executivo e 7.430 euros (o equivalente a R$ 38.880) ao do novo sedã de luxo 100% elétrico, respectivamente. As entregas começam no último trimestre deste ano, mas o que era para ser a materialização de um ideal pode se tornar em pesadelo por conta de dissonâncias legislativas.

Afinal, a partir da efetiva chegada do Nível 3 às ruas, o ser humano será – ou não – considerado motorista e, em decorrência disso, responsável civil e criminalmente pela condução?

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Antes de mais nada, é importante relembrar o leitor sobre a classificação da Sociedade de Engenheiros da Mobilidade (SAE International), que define os Níveis 0, 1, 2 e 3: O Nível 0 se resume a alertas, sem interferência autônoma na condução do veículo.

O Nível 1 (“hands on” ou ‘mãos a postos’) obriga o motorista a manter atenção à direção, já que ele deve estar pronto para retomar o controle do automóvel a qualquer momento, apesar de o piloto automático adaptativo (ACC), o sensor de estacionamento que faz balizas (Park Assist) sozinho e frenagem automática de emergência (AEB) serem auxílios importantíssimos. O Nível 2 (“hands off” ou ‘mãos livres’) é bastante conhecido pelo sistema AutoPilot, da Tesla, que acelera, freia e esterça o volante sozinho.

Aqui, apesar da expressão “hands off” sugerir que o motorista não precisa se preocupar com a condução, mas isso não é verdade, já que sua atenção é monitorada por sensores e câmeras, que vão “dedurar” se ele foi negligente em um eventual acidente, o responsabilizando civil e criminalmente.

Há, ainda, o “Nível 2.5”, assim chamado informalmente (o Super Cruiser, da Cadillac, e o BlueCruise, da Ford), que incorpora as funções mais avançadas desta classificação. “Na Alemanha, por exemplo, o Tribunal de Justiça condenou a Tesla por propaganda enganosa sobre as capacidades reais do AutoPilot”, conta o presidente da Kraftfahrt-Bundesamt (KBA), a autoridade de tráfego alemã, Richard Damm. “Com base na classificação da SAE, estamos estabelecendo padrões regulatórios nacional, europeu e internacional para a direção autônoma”.

O Nível 3 é, teoricamente, o primeiro que dispensa a atenção do motorista, que pode enviar mensagens de texto e até mesmo ver um filme, enquanto o veículo segue sua rota, autonomamente. Mas é aqui – portanto, bem abaixo dos Níveis 4 e 5, que nem vamos especificar – que a coisa começa a complicar, já que, nem nos Estados Unidos, nenhuma tecnologia de condução autônoma, do AutoPilot da Tesla ao Super Cruise da Cadillac, pode ser usada em todas as rodovias sem restrições.

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“O Estado de Michigan acaba de publicar uma lei que proíbe o motorista de enviar e receber mensagens de texto, acessar ou postar qualquer conteúdo em redes sociais enquanto ‘dirige’. Em Nova York, a legislação é ainda mais rigorosa e proíbe que os condutores tirem as mãos do volante, mesmo quando operam funções por comando de voz”, conta a advogada Jennifer Dukarski, do Butzel Attorneys and Counselors, especialista em segurança veicular.

“Os legisladores estão muito preocupados com a condução autônoma e as leis variam de Estado para Estado. A incerteza vai gerar muitos problemas para os motoristas e muito trabalho, para seus advogados”, avalia Jennifer.

Pagar caro

A falta de um ordenamento legal coeso é encarada de forma diferente por fabricantes europeus e norte-americanos que, juntos, já investiram US$ 200 bilhões (o equivalente a R$ 1 trilhão) neste tipo de tecnologia.

Bem ao estilo do Tio Sam, o presidente-executivo (CEO) da Ford, Jim Farley, não esconde que a marca que preferiu matar seus clientes queimados, na década de 70, a fazer um recall do compacto Pinto, segue fiel à inescrupulosa cartilha neoliberal: “As pessoas estão dispostas a pagar caro para tirarem as mãos do volante e se libertarem do estresse do trânsito”, diz ele.

“Ninguém imagina o poder de precificação da condução autônoma de Nível 3. Nunca mais veremos algo deste tipo”, acrescenta Farley, sem esconder de ninguém que a tecnologia é, na verdade, uma oportunidade sem igual para incrementar os lucros – e o consumidor que se dane ou, como já ocorreu num passado não muito distante, que morra. Na contramão do sincericídio da Ford, as montadoras europeias adotam uma postura mais conservadora, antevendo litígios e até mesmo indenizações.

A Volvo, por exemplo, encerrou o projeto Drive Me, lançado em 2016, após analisar a interação entre motoristas e sistemas autônomos em rodovias próximas de Gotemburgo, na Suécia, ao mesmo tempo em que a Audi, que chegou a comemorar o “lançamento” do primeiro sistema de Nìvel 3 no A8 de 2018, desistiu do programa em 2020 – no caso da marca das quatro argolas, o sedã executivo já vinha equipado com o hardware para a ativação do sistema de Nível 3, por meio de atualizações over-the-air do software original.

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“Ambas as marcas esperavam que uma regulação global se ordenasse, mas isso não aconteceu”, comenta o professor Philip Koopman, coordenador do Departamento de Eletrônica Embarcada e Segurança de Veículos Autônomos da Universidade de Carnegie Mellon (Pittsburgh) e coautor, junto ao catedrático de Direito da Universidade de Miami, William Widen, de “The AwkwarMiddle Mile For Automated Vehicles.

Koopman é o criador da expressão “negligência contributiva” e do conceito de “zona de deformação moral”, que delineia um cenário em que, no futuro, motoristas humanos serão culpados por erros ou limitações dos sistemas autônomos. “Há uma expectativa de que o sistema de Nível 3 possa, algum dia, até mesmo aumentar a segurança viária ao mesmo tempo em que oferece conveniência aos motoristas, mas as questões sobre responsabilidades civil e criminal, bem como em que ponto o controle do veículo será cambiado, têm que ser respondidas”, pontua o professor.

“Essa desconexão entre o mundo legal e o transporte autônomo é um tema que juristas e desenvolvedores discutirão nos próximos dez anos, até chegarmos a um veículo que, legalmente, responda por suas funções autônomas como se fosse o próprio motorista”, acrescentou.

Para o cientista, pesquisador e líder do Advanced Vehicle Technology Consortium do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), Bryan Reimer, o sistema de Nível 3 é, ao mesmo tempo, o sonho de um engenheiro automotivo e o pesadelo de uma montadora.

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“Examinamos, exaustivamente, a forma com que os motoristas usam sistemas automatizados e posso assegurar que, só acionando o modo autônomo, o condutor está assumindo um risco legal”, avalia o especialista.

“O tempo médio que o motorista leva para recobrar a atenção na via, após ser alertado pelo sistema, é de 6,1 segundos e, isso, no Nível 2. Mesmo que utilizem esta tecnologia estritamente conforme as instruções, eles assumirão o risco de enfrentarem processos criminais”, acrescentou Reimer.

Atividades secundárias

De volta ao Drive Pilot, que a Mercedes-Benz já está ofertando para seus sedãs mais sofisticados, a homologação alemã autoriza seu uso em 13 mil quilômetros de malha rodoviária.

“Assim que a legislação chinesa permitir nosso sistema de Nível 3, ele também será ofertado naquele mercado”, disse o diretor de tecnologia da marca, Markus Schaefer que, no entanto, desconversou quando indagado se o motorista pode ler um livro, assistir à Netflix ou enviar mensagens de texto durante os trajetos.

“O Drive Pilot permite que o condutor se afaste do tráfego e se concentre em certas atividades secundárias, mas cada jurisdição tem sua regulação e aguardamos novas aprovações”, disse ele, desviando o foco da conversa para o futuro. “Nosso próximo avanço, na condução autônoma, será a pré-instalação do Intelligent Park Pilot (IPP), que permite estacionamento sem motorista”.

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Há um ano, a Tesla foi condenada pelo Tribunal Regional bávaro a reembolsar um cliente de Munique, dono de um Model X, em 112 mil euros (o equivalente a R$ 585 mil), devido a falhas do AutoPilot e pelo sistema semiautônomo ser considerado um “perigo maciço”.

Na Flórida, um júri federal de Fort Lauderdale atribui 1% de culpa à marca pela morte de um jovem, logo após ele desabilitar o limitador de velocidade do Model S de seu pai – a indenização ficará entre US$ 4 milhões e US$ 6,5 milhões (entre o equivalente a R$ 19 milhões e R$ 31 milhões).

Este texto contém análises e opiniões pessoais do colunista e não reflete, necessariamente, a opinião da Mobiauto.

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