Concessionárias de carro vão morrer e dar lugar a "agências". O que muda?
Por Homero Gottardello
Pouca gente sabe, mas por trás dos salões de vendas amplos, de arquitetura avançada e dos consultores atenciosos, há uma verdadeira guerra entre concessionárias e montadoras.
Desde que os fabricantes resolveram concentrar sua rede de distribuição nas mãos de poucos grupos, isso lá atrás, ainda nos anos 90, a relação entre eles passou a se dar mais na Justiça do que, propriamente, no ambiente de negócios.
No Brasil, a coisa chegou em um ponto de inflexão em 2005, quando diversos revendedores levaram as marcas que representavam “no pau”, pedindo indenizações milionárias por quebra de contrato, acusando-as de armar um ardil para levarem vários representantes à bancarrota, sem arcarem com as devidas indenizações.
Naquele ano, um estudo da Megadealer mostrava que 60% dos revendedores brasileiro haviam fechado as portas ou mudado de dono, na década anterior, e que isso fazia parte de um plano para concentração da rede de distribuidores.
Há exatos cinco anos, o assunto ganhou o noticiário internacional quando Elon Musk consolidou a venda direta como formatação comercial da Tesla, levando a Câmara de Comércio norte-americana (USCC) a entrar em cena para acalmar General Motors, Ford e Chrysler, que, naquela época, anteviram a mudança, mas seguiram e seguem presas a uma obrigação legal que ainda vigora em diversos Estados.
Bom, fato é que, na última semana, a Mercedes-Benz chegou a um acordo com sua rede europeia para a transição do modelo atual de concessão para aquilo que vem sendo chamado de “agência”, antecipando a eletrificação do mercado.
Na prática, os consumidores vão comprar diretamente do fabricante e, até o final de 2023, mais da metade de todos os veículos da montadora vendidos na Europa serão comercializados sob este novo conceito.
“O acordo nos permitirá criar uma estrutura clara e previsível para nosso negócio”, disse o presidente da Associação dos Revendedores Europeus (FEAC) da marca, Friedrich Lixl, que apoia o plano. O mais recente estudo da consultoria Roland Berger aponta que a migração para este sistema garantirá uma economia imediata de 2%, no custo de distribuição, chegando a até 10% no longo prazo.
“O modelo atual de vendas não é sustentável e uma adaptação é essencial para manter a competitividade”, sentenciou o mais recente relatório da consultoria francesa Capgemini, que pesquisou 6.000 consumidores e 50 grupos revendedores dos principais mercados europeus e da China, em 2020.
O parecer da Capgemini ainda trouxe duas importantes informações para balizar o futuro da distribuição: de um lado, 75% dos ouvidos esperam comprar seu próximo zero-quilômetro online, ao mesmo tempo em que 92% desse mesmíssimo público considera “o contato físico” com um revendedor essencial.
É uma contradição que precisa ser resolvida. “Temos que permitir que os clientes se movam com flexibilidade entre os canais digitais e físicos, sem perdê-los de vista”, avalia o diretor-gerente dos analistas da ICPD, Steve Young.
Trata-se do mais recente capítulo de um filme que os brasileiros estão estrelando de maneira passiva sem nem se darem conta: a virada para a eletromobilidade. Enquanto questões regulatórias, industriais e comerciais vêm sendo formatadas a toque de caixa em Europa, Estados Unidos e Ásia, seguimos em sonho profundo no “berço esplêndido”.
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Aqui, o varejo deve continuar funcionando por um bom tempo no mesmíssimo modelo atual: os concessionários compram os estoques das montadoras e assumem os custos de promoção e vendas, além de manterem sua provisão. Lucram com a margem sobre os veículos vendidos, dependendo da negociação com cada cliente, e com os serviços assistenciais.
Claro que há exceções no Brasil, frutos de iniciativas particulares. A Mercedes-Benz Caminhões e Ônibus, por exemplo, já dispõe de um showroom digital, que, por sinal, foi desenvolvido por esta Mobiauto que publica as pensatas deste colunista. Mas uma diretriz nacional, organizada pelo governo, é algo que estamos ainda longe de sequer vislumbrar.
“O modelo de ‘agência’ faz parte da transformação digital do processo de comercialização”, pontua o presidente-executivo (CEO) da Daimler, Ola Kallenius. “Queremos facilitar a interação de nossos clientes conosco, reduzindo o ‘atrito’ nas vendas, não importando se por meio físico ou digital”, acrescenta.
A Mercedes-Benz realizou pilotos bem-sucedidos na Suécia e África do Sul, mesmo país onde a BMW iniciou seus testes. Honda e Toyota escolheram a Austrália para a implementação deste modelo. “Com a agência, ainda exibiremos o produto e, se o cliente quiser fazer um test drive, o veículo será disponibilizado, mas estamos no caminho para a venda totalmente digitalizada”, detalhou Kallenius.
Os modelos e-tron da Audi e ID da Volkswagen já são vendidos exclusivamente no formato “agência”, pelo Grupo VW, e a Stellantis (grupo que reúne as gigantes Fiat, Chrysler, Peugeot e Citroën, bem como suas 15 submarcas) não renovará nenhum contrato de concessão atual, a partir de junho de 2023, passando obrigatoriamente toda sua rede de distribuidores para este mesmo modelo, a partir de 2016.
Sob o argumento de que os clientes terão benefícios como “maior transparência” e “escolhas mais fáceis” dentro dos portfólios das marcas, os fabricantes se preparam para colocar em prática um sistema predatório que vai gotejar comissões, sem – pelo menos é o que se promete, hoje – retirar de seus representantes a receita dos serviços assistenciais.
Para quem tem olfato apurado, o cheiro que se sente é o do descarte em médio prazo.
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Redução de margens
“Estamos convencidos de que, quando estiver estabelecido, este novo modelo de distribuição oferecerá vantagens para todos”, disse a diretora de vendas e marketing da Stellantis para a Europa, Maria Grazia Davino, à “Automotive News Europe” no final de novembro.
“O grupo terá mais controle sobre a operação de vendas de seus veículos, reduzindo a margem paga aos revendedores para algo entre 4% e 5% – hoje os concessionários europeus das marcas do grupo têm uma margem de 9%. Mas assumiremos novos custos”, justificou a executiva.
Ninguém precisa ser graduado em Administração de Empresas, nem em Comércio Exterior, para saber que esta nova lógica será imposta aos distribuidores brasileiros, antes mesmo de eles se darem conta do corte que lhes será imposto.
Em 1995, quando o mercado brasileiro era de 1,4 milhão de unidades, havia 5.700 revendedores no país. Hoje, com um volume estimado em 2 milhões de unidades para o fechamento deste ano, temos 7.300 concessionárias.
Ou seja, a média de veículos por distribuidor foi de 245 unidades anuais para apenas 267 unidades em um período de 25 anos. Achar que as coisas seguirão como estão é de uma ingenuidade “pollyânica”.
Na Europa, de uma forma diferente da que ocorre no Brasil, há a questão dos preços do zero-quilômetro: “Hoje, o cliente consulta o site da marca e vê um valor, mas com um pouco de pesquisa ele pode achar o mesmo modelo por menos em um concessionário”, lembra Steve Young, da ICPD.
“Parece que a intenção é manter os preços ‘de tabela’ em um patamar mais alto, até porque, quando os revendedores anunciam suas promoções na internet, há uma disputa que os fabricantes enxergam de forma bastante negativa”, acrescenta.
A comissão é outra questão que ainda não foi, claramente, definida: “O grande problema é que os distribuidores fazem seus ‘queimões’ como forma de baixar os estoques, mas isso acaba diminuindo o valor agregado do veículo”, explica o presidente-executivo (CEO) do grupo britânico – de revendedores – Vertu, Robert Forrester.
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Melhor planejamento
Forrester, que é partidário do modelo “agência”, não está sozinho e outro grupo do Reino Unido, a Marshall Motor, também vê com bons olhos o novo sistema de distribuição.
“Depois dos saldões, os concessionários acabam tendo que ceder na hora de negociar suas margens para cumprirem metas de bônus por volume. Parece estranho, mas da margem de 13% que conseguimos, só retemos 3% ou 4%”, detalha o presidente-executivo (CEO) da empresa, Daksh Gupta.
“O modelo ‘agência’ adiciona previsibilidade financeira ao modelo atual”, garante o diretor de vendas da VW alemã, Holger B. Santel, ao jornal “Automobilwoche”. “Com uma margem fixa, o lucro bruto por veículo pode ser estimado, ajudando no planejamento do negócio”, completa.
Na Áustria, os concessionários da Mercedes-Benz entraram em atrito com a marca, depois de verem que, no modelo “agência”, não lhes é mais facultado definir os preços finais dos automóveis que vendem e, pior, que a comissão máxima de 5,8% não é suficiente para quem precisa de bater metas para alcançá-la.
Já se o distribuidor atuar, pura e simplesmente, como ponto para test-drives, esta margem cai para 2%. “Um ponto positivo é que, como os revendedores maiores não podem mais promover grandes descontos, roubando os clientes dos concessionários menores, estes últimos se beneficiam do retorno da clientela perdida”, reconhece Steve Young, da ICPD.
“Na prática, você está acabando com estoques que, juntos, empatam bilhões. Há também uma redução no capital empregado pelos revendedores, que precisam de menos crédito e operam com menor risco”, acrescenta.
Seja como for, parece mais do que claro que as transformações que vêm se operando no além-mar ainda estão longe de ganhar corpo por aqui, o que vai reduzindo o mercado brasileiro a práticas ultrapassadas, independentemente das pressões que a montadoras podem estar tentando junto a seus próprios parceiros.
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